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quarta-feira, 3 de abril de 2013

CASA VELHA (COM UMA FLOR À JANELA) (Crônica)

Por: Rangel Alves da Costa*

CASA VELHA (COM UMA FLOR À JANELA) 

Uma casa velha no sertão. Não na cidade nem nos povoados, mas na beira da estrada de chão batido, lá nas distâncias de tudo.

Uma casa velha e empobrecida, de barro batido e cipó, telhado de pouca telha e muita palha ressequida, em cujas brechas davam para se avistar uma lua imensa, bonita. E também por onde entravam raios de sol escaldante.

Na casa velha uma pequena família. O marido e a esposa e dois filhos. Ele sem ter o que plantar nem colher, desempregado de tudo, aperreado de enlouquecer. Ela também sem ter o que fazer. Sem barro no barreiro não havia como moldar nem pote nem panela.

Os dois filhos vivendo o sofrimento da inocência esquecida pela sorte e pelos poderes públicos. Sem escola nas redondezas, não tinham como estudar. Sem comida na panela, com apenas uma pedacinho disso ou daquilo, também quase não tinham o que comer.

Casa de barro e a família também, não seria engano dizer. E barro prestes a despedaçar, estilhaçar a qualquer momento. Ele com uma dor escondida. Ela com uma dor remoendo. Os filhos na dor chorada. A fome. A fome também causa dor na barriga, no estômago, no pensamento.

Nem precisava falar da fome. Ela estava em todo lugar, nua, gritando, impossível de ser suportada. Mas tinha de ser. Gente grande suporta essa dor, mas os pequeninos não. Dor danada de acontecer. Fome terrível por todo lugar.
Duas panelas de barro, porém emborcadas, em cima de uma mesa velha. Também duas de alumínio penduradas numa trempe de canto de canto de parede. Pratos de alumínio arrumados um sobre o outro e as colheres por cima. Tudo empoeirado. Quase sem uso.


Dois potes e uma moringa. Em apenas um pote se avistava o barro do fundo molhado. Sinal que ainda tinha água, mas bem pouquinha mesmo. Como costumeiro acontecer, não havia cobra enrodilhada por trás do fundo do pote. Diante da situação, certamente que havia preferido morrer debaixo do sol.

A moringa estava fazia, mas colocada no umbral da janela. Segundo a crendice daquele povo, mesmo vazia ele tinha de ser mantida ali. A boca vazia, virada pra cima, acabava gemendo de sede. E tal gemido era ouvido pelas forças da natureza. E somente assim a chuva poderia cair mais depressa.

Desse modo, dia e noite e noite e dia e a moringa ali de boca aberta, sedenta, no umbral da janela. Só que os dias passavam, também os meses, e nada de seus rogos serem atendidos. Nenhuma nuvem de chuva, nenhuma gota d’água caindo.

Preocupados apenas em olhar a moringa de vez em quando e lançar os olhos sem brilhos para o céu azulado e o sol escaldante, jamais atentaram para o que acontecia logo ao lado da moringa, num cantinho do umbral.

Ali, calma e silenciosamente, foi crescendo uma plantinha. Mesmo sem gota d’água derramada por cima, mesmo sem jamais qualquer adubo, verdejou a ponto de fazer surgir uma florzinha vermelha. Apenas uma.

Os dias passavam, a preocupação aumentava com a seca, a fome e a sede se alastrando cada vez mais. E quando olhavam em direção à janela procuravam enxergar apenas a moringa como salvação. Mas a florzinha estava ali.

Mas o que fez com que aquela flor vermelha brotasse daquela plantinha estranhamente nascida ali, sem qualquer grão ter sido jogado por cima do barro duro? Sim, como uma planta poderia ter surgido das raízes do barro petrificado, como o existente naquela janela?

Se a fé do povo ainda não havia surtido efeito com relação aos rogos saídos da boca da moringa, outra coisa aconteceu. Tanto o pai como a mãe, fugindo do olhar das crianças, corria para chorar na janela. No cantinho da janela.

Não chorava do lado que estava a moringa, mas do outro. E neste lado, cada lágrima caída foi sendo acolhida pelo barro como semente. Até vingar, brotar e virar flor. Uma flor vermelha na janela.

E a natureza, tão encantada com a florzinha ficou que passou a temer pelo seu futuro naquele mundo de sequidão. E por isso fez a chuva cair por todo lugar. Um mundo de benção caída do céu para alimentar o jardim do lugar: o povo, a terra, a vida...


(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com


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