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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

SOBRE PALAVRA "SERGIPE": A VERSÃO DE JOÃO VAMPRÉ

Material do acervo do pesquisador Antônio Corrêa Sobrinho
João Vampré (1868/1949)

O estanciano João Vampré (1868/1949) chegou à província de São Paulo aos dezoito anos de idade, radicando-se em Limeira e, depois, na capital paulista. Fez nome como jornalista e historiador dos costumes – folclorista, diziam no início do século XX – nas páginas do Diário Popular, no Comércio de São Paulo, Correio de São Paulo, Correio Paulistano e no Estado de São Paulo. Da terra bandeirante, retratou as festas de São João, Corpus Christi, da Santa Cruz do Pocinho, a dança dos Caiapós, e a figura de Fernão Dias Pais (cf. Guaraná, 1925, p. 148; Cordeiro, 1949, p. 288-289; Lima, 1984, p. 80).

Não deveria o Vampré ser pouco expressivo nesta São Paulo que ensaiava saltar de vila provinciana à metrópole, no final do século XIX, haja vista a sua participação como sócio fundador da Academia Paulista de Letras no distante 1909. Como dizem alguns enciumados, seria mais um desses curiosos personagens que, por absurda casualidade, insistira em nascer no modesto Sergipe, como os Joões Ribeiro da vida.

Ocorre que o literato João Vampré não parece ter rompido em definitivo os laços com a terra mãe e nem é de todo improvável que nela tenha exercitado o olhar antropológico que tanta projeção lhe trouxera em São Paulo. Prova-o seu trabalho sobre “O natal em Sergipe”, editado em italiano, bem como o verbete que discute o significado do vocábulo que dá nome ao nosso Estado.

O verbete foi publicado da Revista de Língua Portuguesa (Rio de Janeiro, n. 43, p. 25-26, set./out. 1926), veículo dirigido por Laudelino Freire – outro sergipano “acidental” – e faz parte de uma série de comentários filológicos divulgados nesse e em outros periódicos. Tais comentários foram, provavelmente, organizados no trabalho intitulado “Influência do Tupi nos nomes geográficos” (Rio de Janeiro, 1938/1940).

O único juízo que colhi sobre o Vampré tupinólogo não lhe foi muito favorável. Plínio Airosa, primeiro professor de Etnologia brasileira e Língua tupi-grarani, da Universidade de São Paulo, classificou o sergipano de “curioso” e ao seu trabalho como de “valor muito reduzido” (Airosa, 1954, p. 39-40). Como as verdades mudam de dono conforme o tempo e a embalagem, segue a transcrição paleográfica do étimo “Sergipe”, quase noventa anos após a primeira divulgação para que o leitor sergipano tire as suas próprias conclusões.

“O Brasil offerece um quinhão original no estudo da sua toponymia, na maior parte derivada da raça aborigene.

‘Quase todos os nossos nomes naturalisticos e geographicos’, como escreve o profundo polygrapho João Ribeiro, ‘dimanam dessa fecunda fonte que desalterou a imaginação primitiva. E os conquistadores, que tudo destruiram, não puderam apagar do arvoredo, dos rios e das montanhas essas vozes claras e sonora que ainda hoje palpitam e agonizam sobre o destroço das tribus vencidas”. Despertado por esta ordem de idéas, peço venia ao eminente patricio citado, a que consagro estas linhas, para tentar uma explicação da origem controvertida da palavra Sergipe. A lexeogenia do referido vocabulo, corruptela de Cerijipe ou Sirigipe, primitivo nome da illha de Villegaignon e assim graphado nos mais antigos documentos, não pode ser entendida senão pelos agrupamentos dos adjectivos adverbiaes Ceri e ipe, ligados pelo relativo j, como ensinaram os padres Montoya e Luiz Figueira, nas suas grammaticas da lingua tupy.

Manuseando o diccionario de Montoya, vê-se que Ceri significa ‘pouco’ e ipe ‘perto’. Os indigenas quizeram referir-se á situação de outros aldeamentos que ficavam mais afastados do ponto da sua taba principal; pretenderam elles designar por este termo idéa analoga á que exprimimos pelo temo ‘sertão’, isto é, ponto afastado ou pouco proximo. A consoante j introduzida no vocapulario tupy, por influencia portugueza, exprime relatividade da distancia em razão do ponto em que elles se achavam. Os relativos e os reciprocos têm grande valor na lingua geral dos indios, como ensinaram os referidos indianologos; o relativo j é empregado para substituir o primitivo i, quando o nome a que se liga principia por vogal, como se verificou no latim em relação ás linguas modernas que delle se derivaram. Assim, em vez de jaguara, japy, japecanga, se diriam primitivamente: iaguara iapy e iapecanga.

Se da propria estructura do vocabulo ‘Cerijipe’, sem alteração alguma, resulta uma significação propria, não temos o direito de dar-lhe semantica estranha, tal como ‘Rio de siris’ e outras.

Cada vez mais me convenço da affirmativa do padre Ives d’Evreux, na investigação dos nomes tupys, aplicados aos logares.

‘Os indigenas, muito sabios na formação dos designativos locais, compunham taes nomes, após deliberação em conselho, assignalando caractéres physicos da coisa nomeada, ou factos permanentes, taes como molestias endemicas, perigos constantes, etc.’

O systema geographico e´, além disso, o unico que acha conformação na estructura grammatical da lingua tupy e o que menos se presta a corrupções. Assim, a palavra ‘Ciará’ composta do relativo ‘Ci’ e do nome ‘araá’ que significa ‘molestia do calor’, como se pode verificar no lexico de Montoya, exprime perfeitamente um logar sujeito aos perigos da sêca.

Em nossa vaidosa presunção, vivemos a suppor que o indio barbaro na predicação dos nomes é tão futil como nós outros civilizados.”

Para citar este texto:

FREITAS, Itamar. Da palavra 'Sergipe': a versão de João Vampré. Jornal da Cidade, Aracaju, 31 ago. 2003.

Saiba mais sobre Vampré:
"Vampré -Uma família sergipana em São Paulo", de Luiz Antônio Barreto. http://infonet.com.br/luisantoniobarreto/ler.asp?id=94267&titulo=Luis_Antonio_Barreto

Fontes das imagens

Referências bibliográficas
LIMA, Jáckson da Silva. Os estudos antropológicos, etnográficos e folclóricos em Sergipe. Aracaju: governo do Estado de Sergipe/Secretaria de Estado da Educação e Cultura/Subsecretaria de Cultura e Arte, 1984.
VAMPRÉ, João. Étimo do vocábulo “Sergipe”. Revista de Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, n. 43, p. 25-26, set./out. 1926.
VAMPRÉ, João. A influência do tupi nos nomes geográficos. An. Hidrog. Mar. Brasil, Rio de Janeiro, 1938/1940. (Obra não consultada).
AIROSA, Plínio. Primeiras noções de Tupi. São Paulo: sn, 1933.
AIROSA, Plínio. Apontamentos para a bibliografia da língua tupi-guarani. Boletim da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, São Paulo, n. 169, 1954. (A primeira edição é de 1943).
SAMPAIO, Teodoro. O tupi na geografia nacional. [São Paulo]: sn, 1928. (“Sergipe, ant. Cirigype, c. ciri-gy-pe, no rio dos siris. Alt. Sirigype, Sirgipe, Sergipe.” p. 306).
CORDEIRO, J. P. Leite. Necrológio de João Vampré. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, São Paulo, v. 49, p. 288-289, 1949.


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