Por Brasília
Carlos Ferreira – Organizadora, 1992
“A ILHA
GRANDE”
Fomos avisados da nossa ida para a Ilha Grande. A Ilha Grande, como presídio, tinha uma pavorosa fama. Em capítulo anterior destas memórias fizemos ligeiras referências ao pavor que a Ilha Grande inspirava aos presos comuns. Quanto aos presos políticos, meus irmãos Jonas Reginaldo da Rocha e Antônio Reginaldo Sobrinho lá estiveram por dois anos, quando vieram deportados do Rio Grande do Norte, juntamente com centenas de outros companheiros, após a revolução de 1935.
Era diretor do presídio naquela época, o famoso Canepa, que celebrizou-se pelas crueldade que infligia os presos em geral, que tinham a infelicidade de cair sob sua guarda. Presos comuns e presos políticos viviam sob regime forçado, obrigados a carregar vigas perigosamente pelas montanhas, sem ter em conta a constituição física e a saúde de cada um.
Jonas, com um pouco mais de resistência, conseguiu subsistir aos maus tratos. Toínho mais fraco, não resistiu e chegou a ser carregado nas costas pelo conterrâneo Epifânio Guilhermino que demonstrou na hora da aflição, o seu elevado espírito de solidariedade, o que fez reforçar a estima e o apreço que sempre tivemos por ele.
Toínho voltou da Ilha Grande com os nervos abalados, nunca mais recuperou a saúde, acabando seus dias tristemente, num hospício em Natal.
Entretanto, o mundo dá muitas voltas. A nossa ida agora para a Ilha Grande, já não inspirava pavor. O Brasil, como já foi dito, entrou na guerra ao lado das Nações Democráticas para combater o nazi-fascismo. Seria difícil prever qual a reação do nosso povo e dos pracinhas, após a vitória, diante da existência da ditadura do Estado Novo, com seus cárceres apinhados, com seus crimes e atrocidades. Não seria fácil fazer o povo entender essa contradição. Enquanto ele sacrificava sua vida para derrotar o nazismo na Europa, aqui mesmo em nosso país, se mantinha de pé uma ditadura implantada nos mesmos moldes nazistas. Além disto, as ruas das cidades estavam cheias de inscrições pedindo anistia e nas manifestações populares de todo o país, era esse o clamor das multidões.
O governo de Getúlio sentiu que chegara a hora de recuar. Transferiu os presos políticos para a Ilha Grande e entregou a direção do presídio ao Coronel Nestor Veríssimo, caudilho gaúcho, ex-participante da Coluna Prestes, o elemento indicado para abrir caminho à transformação democrática e à anistia.
Um transporte da Marinha nos levou à Ilha Grande. Ao desembarcar em Dois Rios, fomos recebidos na praia, por funcionários do presídio, que ali mesmo procederam a nossa identificação. Horas depois estávamos instalados nos alojamentos a nós reservados.
No dia seguinte, depois do café, os portões foram abertos e pudemos sair, ir à praia, passear pelas ruas. Só não podíamos sair da vila sem permissão.
Nos primeiros passeios ficamos conhecendo a figura curiosa do Coronel Nestor Veríssimo. Ele andava montado numa burra, pachorrento, e foi assim que o vi pela primeira vez. Gordo, estrábico, fala mansa, costumava quebrar a seriedade de algumas conversas com um palavrão chistoso. Diziam que tinha o corpo cheio de marcas de perfurações por balas. Era um tipo patriarcal, com fama de corajoso e justiceiro.
Os presos políticos da Ilha Grande (nacionalistas, socialistas e comunistas) se consultaram e tomaram uma resolução com referência a guerra que o Brasil estava enfrentando, sob a bandeira das Nações Unidas, contra o nazi-fascismo. De acordo com a resolução nós os presos políticos mencionados, nos colocávamos à disposição do governo brasileiro a fim de seguirmos, voluntariamente, para o front da guerra contra o eixo nazi-fascista. Finda a guerra, voltaríamos dispostos a cumprir normalmente, até o fim, as penas a que fôramos condenados.
O nosso oferecimento formal representava apenas uma tomada de posição, pois não tínhamos ilusões quanto a sua aceitação, não só pela absoluta falta de bases jurídicas, mas também por motivos discriminatórias de caráter ideológico, fáceis de imaginar.
A nossa decisão foi encaminhada através da direção do presídio. Entretanto, nenhuma resposta chegou até nós. Como fora previsto, a nossa proposta não foi sequer tomada em consideração.
Entre os “quinta colunas” presos na Ilha Grande havia um rapaz, brasileiro, tipão forte, carrancudo, que chamava a atenção pelos motivos de sua prisão. Ele tinha sido convocado para as fileiras do Exército e incluído no Corpo Expedicionário Brasileiro. Quando se aproximou a hora de embarcar para o front da Itália, ele deu um tiro no próprio pé, para fugir do seu dever. E de fato não embarcou, mas foi preso e processado. E se vangloriava do seu ato vergonhoso.
O Coronel Nestor Veríssimo, diretor do presídio, abriu a possibilidade de trabalho aos presos políticos. Os que voluntariamente quisessem, poderiam trabalhar, recebendo uma pequena remuneração. Essas frentes de trabalho constavam de serviços de pedreiro (construção de casas residenciais, sendo uma para hospedagem das visitas dos próprios presos políticos), carpintaria (construção de uma lancha no estaleiro existente), pintura, fabrico de carvão na mata próxima etc.
O trabalho remunerado era importante, especialmente para os que tinham família e não recebiam “montepio” ou qualquer outro rendimento. O trabalho em si permitia também, uma mudança para melhor no sistema de vida seguido até então, pois a maioria dos presos políticos vivia encerrada nos cubículos, fabricando quinquilharias, dormindo ou passando o tempo com jogos e bate-papos quase sempre inúteis.
Com o novo trabalho proposto, os presos passariam a ter uma vida mais sadia, ao ar livre, alguns teriam oportunidade de aprender uma profissão, outros de exercitar a que já possuíam. Aconteceu que certos líderes presumidos, que não tinham grande necessidades de dinheiro nem estavam muito habituados ao trabalho profissional, deram o contra. Muitos estranharam que alguém pudesse ser contra o trabalho. Uma coisa tão normal, tão necessária e mesmo imprescindível à vida do operário. Conjecturas surgidas daqui e dali atribuíam a ciúmes dos tais líderes, receio infundado de perderem o controle de seus liderados, que iam se afastar de sua proteção.
Foi convocada uma assembleia do coletivo para resolver o assunto. Nos debates, os inimigos do trabalho declararam finalmente, as razões de sua atitude. Segundo eles o trabalho proposto pelo diretor oferecia o seríssimo perigo de corromper alguns companheiros mais fracos. Por isso estavam contra. Esse conceito de fragilidade essa suspeitosa acusação lançada no ar desta maneira, indiscriminadamente, era vexatória e desconcertante.
O argumento em si era frágil demais e não foi difícil e réplica dos favoráveis ao trabalho. Disseram estes que trabalhar é um direito pelo qual lutam os povos em todo o mundo e que qualquer tentativa de impedir o exercício desse direito era uma violência. Mais grave ainda, era essa violência, quando partia de quem justamente devia defender e apoiar essa justa causa. Disseram mais, que o trabalho nunca foi meio de corrupção para o trabalhador e sim de subsistência. E sendo um meio de subsistência, tentar impedí-lo é mais do que uma violência, é uma ação desumana.
CONTINUA...
Fomos avisados da nossa ida para a Ilha Grande. A Ilha Grande, como presídio, tinha uma pavorosa fama. Em capítulo anterior destas memórias fizemos ligeiras referências ao pavor que a Ilha Grande inspirava aos presos comuns. Quanto aos presos políticos, meus irmãos Jonas Reginaldo da Rocha e Antônio Reginaldo Sobrinho lá estiveram por dois anos, quando vieram deportados do Rio Grande do Norte, juntamente com centenas de outros companheiros, após a revolução de 1935.
Era diretor do presídio naquela época, o famoso Canepa, que celebrizou-se pelas crueldade que infligia os presos em geral, que tinham a infelicidade de cair sob sua guarda. Presos comuns e presos políticos viviam sob regime forçado, obrigados a carregar vigas perigosamente pelas montanhas, sem ter em conta a constituição física e a saúde de cada um.
Jonas, com um pouco mais de resistência, conseguiu subsistir aos maus tratos. Toínho mais fraco, não resistiu e chegou a ser carregado nas costas pelo conterrâneo Epifânio Guilhermino que demonstrou na hora da aflição, o seu elevado espírito de solidariedade, o que fez reforçar a estima e o apreço que sempre tivemos por ele.
Toínho voltou da Ilha Grande com os nervos abalados, nunca mais recuperou a saúde, acabando seus dias tristemente, num hospício em Natal.
Entretanto, o mundo dá muitas voltas. A nossa ida agora para a Ilha Grande, já não inspirava pavor. O Brasil, como já foi dito, entrou na guerra ao lado das Nações Democráticas para combater o nazi-fascismo. Seria difícil prever qual a reação do nosso povo e dos pracinhas, após a vitória, diante da existência da ditadura do Estado Novo, com seus cárceres apinhados, com seus crimes e atrocidades. Não seria fácil fazer o povo entender essa contradição. Enquanto ele sacrificava sua vida para derrotar o nazismo na Europa, aqui mesmo em nosso país, se mantinha de pé uma ditadura implantada nos mesmos moldes nazistas. Além disto, as ruas das cidades estavam cheias de inscrições pedindo anistia e nas manifestações populares de todo o país, era esse o clamor das multidões.
O governo de Getúlio sentiu que chegara a hora de recuar. Transferiu os presos políticos para a Ilha Grande e entregou a direção do presídio ao Coronel Nestor Veríssimo, caudilho gaúcho, ex-participante da Coluna Prestes, o elemento indicado para abrir caminho à transformação democrática e à anistia.
Um transporte da Marinha nos levou à Ilha Grande. Ao desembarcar em Dois Rios, fomos recebidos na praia, por funcionários do presídio, que ali mesmo procederam a nossa identificação. Horas depois estávamos instalados nos alojamentos a nós reservados.
No dia seguinte, depois do café, os portões foram abertos e pudemos sair, ir à praia, passear pelas ruas. Só não podíamos sair da vila sem permissão.
Nos primeiros passeios ficamos conhecendo a figura curiosa do Coronel Nestor Veríssimo. Ele andava montado numa burra, pachorrento, e foi assim que o vi pela primeira vez. Gordo, estrábico, fala mansa, costumava quebrar a seriedade de algumas conversas com um palavrão chistoso. Diziam que tinha o corpo cheio de marcas de perfurações por balas. Era um tipo patriarcal, com fama de corajoso e justiceiro.
Os presos políticos da Ilha Grande (nacionalistas, socialistas e comunistas) se consultaram e tomaram uma resolução com referência a guerra que o Brasil estava enfrentando, sob a bandeira das Nações Unidas, contra o nazi-fascismo. De acordo com a resolução nós os presos políticos mencionados, nos colocávamos à disposição do governo brasileiro a fim de seguirmos, voluntariamente, para o front da guerra contra o eixo nazi-fascista. Finda a guerra, voltaríamos dispostos a cumprir normalmente, até o fim, as penas a que fôramos condenados.
O nosso oferecimento formal representava apenas uma tomada de posição, pois não tínhamos ilusões quanto a sua aceitação, não só pela absoluta falta de bases jurídicas, mas também por motivos discriminatórias de caráter ideológico, fáceis de imaginar.
A nossa decisão foi encaminhada através da direção do presídio. Entretanto, nenhuma resposta chegou até nós. Como fora previsto, a nossa proposta não foi sequer tomada em consideração.
Entre os “quinta colunas” presos na Ilha Grande havia um rapaz, brasileiro, tipão forte, carrancudo, que chamava a atenção pelos motivos de sua prisão. Ele tinha sido convocado para as fileiras do Exército e incluído no Corpo Expedicionário Brasileiro. Quando se aproximou a hora de embarcar para o front da Itália, ele deu um tiro no próprio pé, para fugir do seu dever. E de fato não embarcou, mas foi preso e processado. E se vangloriava do seu ato vergonhoso.
O Coronel Nestor Veríssimo, diretor do presídio, abriu a possibilidade de trabalho aos presos políticos. Os que voluntariamente quisessem, poderiam trabalhar, recebendo uma pequena remuneração. Essas frentes de trabalho constavam de serviços de pedreiro (construção de casas residenciais, sendo uma para hospedagem das visitas dos próprios presos políticos), carpintaria (construção de uma lancha no estaleiro existente), pintura, fabrico de carvão na mata próxima etc.
O trabalho remunerado era importante, especialmente para os que tinham família e não recebiam “montepio” ou qualquer outro rendimento. O trabalho em si permitia também, uma mudança para melhor no sistema de vida seguido até então, pois a maioria dos presos políticos vivia encerrada nos cubículos, fabricando quinquilharias, dormindo ou passando o tempo com jogos e bate-papos quase sempre inúteis.
Com o novo trabalho proposto, os presos passariam a ter uma vida mais sadia, ao ar livre, alguns teriam oportunidade de aprender uma profissão, outros de exercitar a que já possuíam. Aconteceu que certos líderes presumidos, que não tinham grande necessidades de dinheiro nem estavam muito habituados ao trabalho profissional, deram o contra. Muitos estranharam que alguém pudesse ser contra o trabalho. Uma coisa tão normal, tão necessária e mesmo imprescindível à vida do operário. Conjecturas surgidas daqui e dali atribuíam a ciúmes dos tais líderes, receio infundado de perderem o controle de seus liderados, que iam se afastar de sua proteção.
Foi convocada uma assembleia do coletivo para resolver o assunto. Nos debates, os inimigos do trabalho declararam finalmente, as razões de sua atitude. Segundo eles o trabalho proposto pelo diretor oferecia o seríssimo perigo de corromper alguns companheiros mais fracos. Por isso estavam contra. Esse conceito de fragilidade essa suspeitosa acusação lançada no ar desta maneira, indiscriminadamente, era vexatória e desconcertante.
O argumento em si era frágil demais e não foi difícil e réplica dos favoráveis ao trabalho. Disseram estes que trabalhar é um direito pelo qual lutam os povos em todo o mundo e que qualquer tentativa de impedir o exercício desse direito era uma violência. Mais grave ainda, era essa violência, quando partia de quem justamente devia defender e apoiar essa justa causa. Disseram mais, que o trabalho nunca foi meio de corrupção para o trabalhador e sim de subsistência. E sendo um meio de subsistência, tentar impedí-lo é mais do que uma violência, é uma ação desumana.
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