Por Brasília
Carlos Ferreira – Organizadora, 1992
Quanto à corrupção, corrompe-se aquele que é corruptível e o corrupto, na sociedade capitalista, encontrará sempre meios de se corromper, quando bem o desejar. Se o trabalho fosse um fator de corrupção, que seria da classe operária, que vive do trabalho, seu único meio de vida? A discussão prosseguiu horas e horas a fio. Depois de três dias seguidos de calorosos debates a mesa teve que submeter o caso a votação. A maioria votou pelo trabalho. Os inimigos do trabalho não se conformaram com a derrota. Abandonaram o coletivo, mudaram-se para outra galeria e formaram um novo coletivo minoritário. Realizaram a cisão sem fundamento, desnecessária e ridícula.
Uma vez que não conseguiram “acaudilhar” a todos os companheiros, conformaram-se em ser chefes de uma minoria.
Trabalhou quem quis. Quem não quis não trabalhou. Porque ninguém foi obrigado a nada. E ninguém se corrompeu nem se desonrou para desespero dos falsos profetas. Quando houve a anistia, vi “trabalhista e não trabalhista” abraçados, na maior alegria. E mais tarde em liberdade, estavam novamente irmanados na mesma luta. As pequenas querelas desaparecem, sempre que há um ideal mais forte.
Um grupo de presos políticos em abaixo assinado, requereu ao Coronel Nestor Veríssimo permissão para que todo aquele que assim desejasse, pudesse morar com sua família na Ilha Grande. O requerimento baseava-se na existência de um antigo projeto de criação de colônias agrícolas para presidiários, no qual esta permissão estava incluída. Segundo nos informaram, o diretor do presídio levou o oficio diretamente ao presidente Vargas, tendo sido por este despachado favoravelmente.
Em vista desse atendimento, todos os presos políticos passaram a ter direito de mandar buscar suas famílias para a Ilha, com casa de graça para morar, podendo retirar semanalmente os gêneros alimentícios em espécie, correspondente à etapa a que um tinha direito como detendo. Viveriam fora do presídio, tendo apenas que se apresentar na portaria pela manhã e à tarde. E seus filhos podiam freqüentar a Escola Pública existente na vila.
Como já havia o direito ao trabalho parcialmente remunerado, ficariam assim com a subsistência garantida, modesta mais suficiente. O ofício solicitando a nossa moradia na Ilha foi assinado (se não me falha a memória) por Mauro, Brás, Azevedo, Bonfim, Epifânio Guilhermino, eu e outros.
Na margem do rio havia um velho edifício abandonado, que noutros tempos fora hospital. Nós mesmos, os futuros moradores, restauramos, pintamos e dividimos o casarão em apartamentos, cada qual escolheu o seu. O tenente França tomou posse de uma casinha desabitada que havia próximo à praia e, caprichosamente, transformou-a nem pequeno “bangalô”.
Antes desses preparativos eu já tinha consultado, por carta, minha família sobre sua vinda para a Ilha. A resposta afirmativa veio rápida e decidida. Agora era só aguardar.
Quanto aos recursos financeiros para a viagem, ficou por conta da “campanha de ajuda aos presos políticos e suas famílias”, que funcionava no Rio e nos Estados. Graças ao trabalho formidável de solidariedade encabeçado pelos abnegados companheiros Jorge da Silveira Martins, Fernando Lacerda e muitos outros, a importância suficiente foi arrecadada e enviada ao Rio Grande do Norte.
O difícil, para minha família era realizar essa viagem por terra, já que a vinda por mar era impossível, devido aos frequentes torpedeamentos dos navios brasileiros pelos submarinos alemães. Estradas de rodagem, praticamente não existiam e uma viagem como essa na época, era uma verdadeira temeridade.
Minha mulher, com as três crianças, resolveu enfrentá-la. Arrumou a trouxa e se pôs na estrada. O filho mais velho tinha 6 anos de idade, o menor 5 e a menina 4.
Para se ter uma ideia do feito, vamos descrever o roteiro. Essa viagem, nos dias atuais, é uma viagem comum, de ônibus, e leva 4 ou 5 dias. Naquele tempo ela foi realizada da seguinte maneira: de Mossoró a Natal, em caminhão do Correio; de Natal a Recife de trem; de Recife a Petrolina num jipão do Exército; de Petrolina a Juazeiro na Bahia de barca; de juazeiro a Pirapora em Minas, pelo Rio São Francisco de gaiola; de Pirapora a Belo Horizonte ao Rio Janeiro de trem, idem; do Rio a Mangaratiba de trem; de Mangaratiba a Abraão (Ilha Grande), de Lancha (a balalaika); de Abraão a Dois Rios de ônibus.
Com mais de 2 meses de viagem, chegaram ao presídio da Ilha Grande, a mulher e os três filhos. Magros e queimados de sol, de fazer dó. Mas chegaram. Ainda com saúde, alegres e felizes.
A minha família, da mesma forma como as outras que iam chegando, já encontrou a casa pronta, com móveis improvisados e utensílios domésticos indispensáveis. Para isto favoreceu o espírito de solidariedade e ajuda mútua e também o fato de que muitos ali eram operários especializados. Tínhamos de boa qualidade, marceneiros, pedreiros, pintores, mecânicos, ferramenteiros, além daqueles que tudo fazem e de tudo entendem um pouco e que são utilíssimos nessas horas. Tudo de graça, pelo sistema do cooperativismo.
Para garantir e reforçar a alimentação, já havíamos iniciado a criação de galinhas, patos e cabritos. Tínhamos ao lado da casa o rio que dava alguns robalos e bem perto estava a praia, onde a pescaria de arrastão nos fornecia peixes fresquinhos, quase sempre com fartura. O leite e as verduras vinham da vacaria e da horta do presídio. Aos domingos havia uma feirinha dos caipiras, onde podíamos nos abastecer por bons preços, de frutas e algo mais que nos faltasse.
As crianças se recuperaram rapidamente da longa viagem, ficaram fortes e foram entrando para a escola, à media que iam atingindo a idade. E assim ia transcorrendo a nossa vida de presidiários, agora amenizada com as novas medidas humanizadoras.
Entretanto, à tarde, quando parávamos de trabalhar, quando o sol começava a se esconder no horizonte, é que a gente fazia esforço para afugentar a tristeza e evitar a depressão. É que, por mais que procurássemos nos convencer de que tudo ia bem, não conseguíamos sufocar os nossos anseios de liberdade.
Não estávamos com nenhuma corrente nos pés (também pudera!), os “quadrados”, as “as salas de detidos” e as “solitárias” ficaram para trás. Mas estávamos numa ilha-Prisão.
Tudo corria normalmente. No Cassino dos Guardas realizou-se uma festa dos funcionários do presídio. O Coronel Nestor Veríssimo esteve presente. Depois que tudo terminou ele sentiu-se mal. Disseram que houve qualquer complicação relacionada com seus antigos ferimentos. A doença agravou-se rapidamente. Alguns dias depois estava morto.
Em substituição ao falecido, assumiu a direção do presídio o Major Coimbra, também gaúcho. O novo diretor manteve todas as regalias instituídas pelo seu antecessor, demonstrando boa vontade no tratamento com os presos políticos. Decididamente uma aura aprazível estava amenizando nossas penas. Sá faltava a anistia. Estávamos certos de que ela não tardaria a chegar.
Nas frentes de combate da grande guerra, começou a derrocada das tropas do “eixo”.
CONTINUA...
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