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domingo, 2 de agosto de 2020

HERÓIS E BANDIDOS


Por Agripino F. da Nóbrega

O nordeste brasileiro não soube, como outros Estados da União, atrair nem fixar o estrangeiro. Isto, de certo, lhe tem impedido de aproveitar as lições de povos mais velhos, mais adiantados ou mais experientes, se bem que, por outro lado, uma semelhante omissão haja, felizmente, concorrido para nos resguardar à contaminação de criminosidades bem temíveis.

Ademais, a caatinga nordestina, rude, desolada e selvagem nunca poderia envolver, para as populações de que se compõe, problemas de alta ressonância social ou econômica, cheios de complexidade e de transcendência. Larga e espaçosa, como é, e à qual de maneira instintiva se afeiçoou a sua gente, trabalhadora, tenaz e obreira, raramente é abalada por um acontecimento que lhe possa quebrar a mesmice de uma existência sempre idêntica e sem maiores exigências dos indivíduos.

Tanto que o crime é ali, em geral, uma reação, uma forma de defesa particular ou coletiva contra a injúria, contra os abusos ou contra a prepotência. Não se mata para roubar, e sim mata-se em defesa da honra da pessoa, em desagravo da honra da família, em revindita a espoliações de propriedade territorial, ou na subitaneidade de irreprimíveis arrancos emotivos.

À parte uns raros casos em que a delinquência e ou uma projeção de anormalidades antropológicas ou de acerbamento de paixões, ou efeito de abuso do álcool, no mais só se pode explicar como atitude ou protesto contra situações de ilegalidade criadas pelo acumpliciamento ou proteção de mandões em favor de asseclas e trabuqueiros.
Naturalmente, aquela região só comportava facínoras de humilde estirpe, sem os penaches e os apetrechos dos êmulos civilizados, que usam a dinamite, o maçarico de acetileno ou o suborno, a corrupção da polícia e da administração.

De alpercata, chapéu de couro e de cartuchame à vista, eles eram o que pretendiam ser na verdade, sem subterfugio ou escamoteação, como se passa alhures, mais agravando o horror e tétrico da face repelente de uma atividade macabra, pelo disfarce, pela traição, pelas dobles e pela mentira.

Lucas da Feira, Antonio Silvino, Antonio Dó ou Lampião foram tipos de malfeitores, que vingaram por pendor da própria constituição íntima e tendências inelutáveis despertadas ao contato e estímulo do ambiente.

Abandonados os sertanejos pela civilização litorânea, renegados pelos governos, atenazados pelos poderosos e dominadores, vítimas de sistemas tributários aplicados com excessivo rigor, comprimidos entre a caatinga adusta, aspérrima, sem higiene, sem cuidados vigilantes, analfabetos, ignorantes e supersticiosos, revolvidos por todos os desesperos e desenganos, de sentimentos exaltados, e, do outro lado, tendo a lutar com a herança de uma atavismo cruel, advindo do índio indomável e do branco carniceiro e feroz, de que descendem, rompiam, subitamente, as malhas da frágil cadeia em que se apertavam os seus instintos de truculência e de bestialidade.

Também, era, por vezes, a afirmação inconsciente das profundas revoltas da sub-raça que formamos contra o descaso com que era tratada, contra o descoco e a farsa do regime, contra o desamor e indiferença dos seus responsáveis.

Não há negar igualmente que a estrutura social, no âmago do Nordeste, comportava em si as causas do desvio de muitos dos seus filhos, desarvorados e pungidos de impaciência e desesperos enormes e insondáveis.

Amargurados, sob o império de uma irritação constante que provinha do solo e dos seus semelhantes insensíveis e prepotentes, como no empenho de mais consumi-los e desorientá-los, vendo-se vítimas de uma díspar preterição de direitos, anulados pelo atraso e pelo insulamento em que eram contidos ou confinados, essa exaltação ia aos poucos minando-lhes as resistências mais profundas.

Uma injustiça, não raro, desencadeava esses impulsos não refreados pela ação intensiva da escola e de tantos outros fatores que moderam ou modificam a personalidade humana.

Arrastado a uma reação violenta, o homem simples e digno que sempre fora, na maioria das hipóteses se transtorna, perde a serenidade, e dominado pelo medo de que venha a faltar liberdade ao Júri para o julgar imparcialmente, sonega-se ao seu pronunciamento, forage-se dos povoados, homizia-se em lugares dificilmente acessíveis à Polícia.

De onde se vê que a falta de uma justiça efetivamente respeitável fê-lo delinquir, depois entibiou-lhe a coragem para acreditar na sua decisão, preferindo a fuga, e fá-lo-á amanhã abrir luta contra a sociedade. Para poder viver, terá de viver do crime. A ele juntam-se, em breve, outros desertores da lei, e assim não tardará em se formar o bando, e assim começará, ao mesmo passo, a nascer um outro poder ilegal no sertão.

No banditismo haviam-se congregado os resíduos de quatro séculos de história. Saturados os espaços nordestinos das paixões, dos desvarios, das ferventes e insopitáveis indignações de indivíduos e de multidões, das fermentações de ódios e de despeitos, a um maior atentado extravasavam, formando enxurro de lama, de opróbio e de sangue.

O certo é que não admira haver na página acidentada da existência de alguns desses transviados, um começo em que se precipitam pelo choque de uma preliminar agressão descabida, desumana, covarde e cínica.

De quantos não temos ouvido o relato emocionante das peripécias involuntárias em que se enredaram, pela truculência de potentados ou em revide merecido a uma injúria ou ofensa acabrunhante, que a sociedade não ligou?

E as perseguições com que os encalçam os seus inimigos, em certos casos encaminham-nos, como última salvação, ao cangaceirismo.

Em relação a outros desajustados, abafados neles as disposições salutares e altruísticas, sem capacidade para reagir contra as solicitações interiores e exteriores, anulada a repugnância ao ato por instigação emanada do próprio ser pervertido em frente da iteração de fatos palpáveis de impunidades clamorosas e rebaixamento de caráter, na escuridão do seu mundo fechado à razão, à criança, à confiança do próximo, sem progresso pessoal, sem animação para o trabalho, indolentes e maus, enveredam a vertiginosa estrada da perdição.

Diário de Pernambuco – 06/12/1953

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