Por Severino Uchôa
Nenhum outro
escritor brasileiro apresenta traços mais expressivos do meio social, através
de sua obra, das suas lutas, do seu temperamento enérgico e audaz, que Tobias
Barreto. O homem nordestino, martirizado e estoico, ressalta nos múltiplos
combates da sua vida, donde saía vitorioso graças à mais poderosa força dos
torturados heroicos, a vontade.
Embora a tenacidade e o labor de Tobias tivessem se orientado apenas no sentido intelectual, observam-se, nos seus trabalhos, todas as características de bravura, talento e persistência dos seus irmãos regionais, titãs morenos, mártires do sol, que há centenas de anos lutam contra a Natureza impiedosa, na mais longa batalha de resignação e sacrifício.
Vencendo à pobreza, às influências literárias, filosóficas e jurídicas dominantes na sua época, e às campanhas acesas pela inveja contra o seu talento e erudição, Tobias projetou-se ao ápice do conceito crítico descortinando horizontes de sabedoria jamais vistos pelos seus antagonistas.
Existe no seu destino uma semelhança curiosa com a do lavrador sertanejo, sem aparelhamento agrário, preso à rotina de métodos quase selvagens na prática rural, coimado pelos civilizados de indolente e enfermo, mas que realizou nas terras secas e queimadas do Nordeste o milagre da indústria açucareira, os celeiros de algodão, cacau e cereais, e emancipou-se da importação, vivendo exclusivamente de produtos nacionais.
Esgotados os veios do classicismo latino, perlustrados os caminhos da lustração francesa, explorados os tesouros da cultura brasileira, procedeu Tobias como o agricultor desiludido ante os roçados tostados pelo sol, as searas devastadas, as cacimbas vazias e o fantasma da fome rondando as choupanas, emigrou. Foi buscar novos campos para o seu trabalho, aventurou-se à exploração de jazidas auríferas ainda desconhecidas dos garimpeiros espirituais da sua terra, para voltar com as mãos cheias de ouro, magnífico de esplendor e fortuna.
Pioneiro intelectual de tão audaciosa aventura, temiam os mestres do direito, acrisolado nas tradições romanas, a este ímpio demolidor dos alicerces da jurisprudência e da filosofia, cujas regras seriam tabus de doutrinas jamais debatidos, como o caboclo forasteiro de regresso à fazenda natal, escandalizando à sua gente com os usos e costumes de outras terras.
Atribuíam-lhe a jactância dos exibicionistas vaidosos, desejosos de humilhar à sabedoria reinante, a petulância de um ateu, a menosprezar os ídolos venerados pelo seu povo, a zombaria de um reformador atrevido renegando às mais consagradas escolas de erudição, quando o animava apenas a intenção de melhorar o nível cultural da mocidade e dar novos rumos ao esforço unilateral da inteligência brasileira.
Avulta na personalidade de Tobias a mesma combatividade sem desfalecimentos, a mesma têmpera indômita de que são forjados o trabalhador rural, o vaqueiro, o pescador, enfim, todos os sacrificados da terra e do clima nordestinos, de organismo rígido e alma dócil, tipos privilegiados de homens temperados na fusão de três raças fortes, em que dominou a influência indígena para a resistência dos mais rudes martírios físicos.
Morrendo na pobreza ao extremo de necessitar do amparo financeiros dos amigos, e deixando um valioso patrimônio de sabedoria para as gerações futuras, manteve ainda o insigne sergipano o destino do lavrador homérico que, realizando a posteridade agrícola do Nordeste, morre miseravelmente, deixando que a prosperidade aproveite o suor dos músculos, gotejado na terra para fecundar os grãos dourados dos cereais, nas colheitas dos séculos vindouros.
“Folha da
Manhã” (SE) - 30.09.1942
Adquiri no acervo do pesquisador Antônio Corrêa Sobrinho
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário