Seguidores

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

OS GURIS AQUI DA RUA (Crônica)


Por: Rangel Alves da Costa(*)
Rangel Alves da Costa

OS GURIS AQUI DA RUA

Minha meninice foi interiorana, lastreada nas brincadeiras matutas do tudo-um-pouco. Um pouco de vaqueiro e fazendeiro de ponta de vaca, um pouco de craque de bola de meia, um pouco de mestre no arremesso de bola de gude, um pouco de cavaleiro de cavalo de pau. E tudo na perfeita harmonia entre a idade e a insaciabilidade lúdica.

Hoje, quando tudo isso me vem à mente apenas como saudade boa, eis que tenho de reviver as meninices contagiantes a partir de cada anoitecer. E não mais lá no meu sertão, em Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo onde nasci, mas na capital sergipana, onde forçadamente moro desde muito. Meu lugar é lá, e hei de retornar!


Bateu o sino da Capela de São João Batista - que por sinal fica logo no outro trecho -, as bocas são limpas apressadamente, os farelos de pão ainda continuam nas camisetas, os chinelos são colocados nos pés apressadamente, e sem nem olhar para a família eles vão abrindo as portas e ganhando o mundo da rua, da própria rua onde moram. Eis a meninada pronta para a festa da noite.

E não demora muito e começo a ouvir a barulhada lá fora. Como o portão do meu recanto de trabalho – ao lado de minha residência - dá diretamente na calçada da rua, e a partir das sete da noite é onde me recolho para escrever e organizar minha vida literária e profissional, impossível não ouvir a criançada lá fora, correndo, brincando, e muitas vezes chegando até diante do portão para o diálogo maravilhoso da meninice.

Sentando, escrevendo, e ouvindo “corra pra buscar a bola seu frangueiro!”, “aqui, aqui, passe logo essa bola seu perna de pau”, “olhe pra onde chuta, não tá vendo o muro da casa não, é?”. Enquanto tento encontrar a métrica da poesia ouço “corra atrás do gato, corra senão ele se esconde debaixo do carro!”, “vá, segure ele com cuidado que vou amarrar uma fita no rabo desse bichano”, “solte agora que o bichinho tá miando demais”.

E ainda ouço coisas desse tipo: “você me empresta sua bola que eu vou buscar a espada luminosa”, “vá pedir a bomba de encher bola senão a gente não pode fazer hoje o campeonato”, “eu que não vou tirar meu chinelo pra fazer a trave”, “quem chutar forte demais e a bola for até lá o outro trecho da rua vai ter de ir buscar e ficar uma partida de fora”, “o gol não valeu não porque a trave tava fora do lugar”.

Fico só ouvindo. Tento a todo custo fingir que não ouço nenhuma voz de criança, nenhum barulho de bola, de correria, gritaria e risadaria de menino, mas não tem jeito. Com o portão aberto, cada palavra ou som vem entrando e chega bem pertinho do meu ouvido para dizer que lá fora está acontecendo o momento mágico da vida de cada um, o instante da brincadeira infantil, a mais perfeita ordem na desordem própria dessa maravilhosa e encantadora idade.


Mas vou escrevendo, continuo criando, rimando um verso, tecendo um parágrafo, dando vida ou morte a um personagem, colocando alguém na garupa do destino. E acontece sempre que de repente paro e vou até o portão presenciar a brincadeira da noite. Outras vezes estiro a cadeira espreguiçadeira num dos cantos após o portão e fico sentado só observando os acontecimentos lá fora.

E são momentos de alegria e de entristecimento. Alegria pelo prazer de presenciar a gurizada festeira, sem pensar em nada na vida senão na sua diversão de todo dia, no seu afazer prazeroso da criancice. Na bola, no chute, na correria, no grito, no gesto de contentamento, enxergo toda a síntese da idade. E entristecimento por relembrar que um dia fui assim também, fui menino brincalhão, festeiro maior embaixo da lua imensa do meu sertão.

E de vez em quando me pego lacrimejando, me vejo de olhos fechados numa desesperada viagem. Jogo fora a roupa da idade, do tempo de agora, do peso dos dias e da vida, e descalço vou pulando espinhos em direção à vereda da árvore do passarinho. Mas não para mexer no ninho, mas para cortar um pedaço de pau e fazer um cavalo alazão. E com ele viajar pelos céus do meu sertão. E que saudade meu Deus!

Tudo aqui escrito teve por pano de fundo a melodia lá fora. Não ouço barulho. Apenas a voz da idade, o eco da infância em sua plenitude maior, no seu momento mágico da brincadeira. Agora vou até o portão e caminhar um pouco pela calçada, seguir até lá. Levarei no olhar a saudade de ontem, mas também alegria no coração pelo momento de agora.



(*)Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com



Nenhum comentário:

Postar um comentário