Por Rangel Alves
da Costa*
Alguém
ultrapassou o portão de madeira, entrou no que restava do jardim, e após a
ventania espalhar as folhas secas de cima de um banco, avistou algo inesperado.
Era uma carta já amarelada e assinada apenas com as letras M. K, e com as
seguintes palavras:
Não adianta me
procurar. Por enquanto não. A janela está fechada, a porta também. Dentro da
casa não há nada que diga sobre os meus passos. Está carta, como se vê, foi
deixada em cima do velho banco do jardim sem flores.
Meu temor
maior seria esta carta não ser encontrada, colocada que foi por cima das folhas
secas do outono que nunca termina. Imaginei que as folhas constantemente caindo
acabassem esvoaçando e fazendo pouso em cima destas minhas palavras, agora tão
distantes. E este o meu medo maior, o de não poder ser lido no que tanto
preciso dizer.
Alguém que
algum dia force a porta e entre em casa para conhecer ou levar o que restou,
logo perceberá a nudez do meu lar. Apenas uma mesa tosca de madeira, dois
bancos também de madeira, um fogão de barro, uma moringa e um pote. E cacarecos
de comer e beber. Apenas isso. Mas eu não precisava ter algo além.
Em cima da
mesa há um caqueiro com os restos do que brotava uma flor lilás. Deixei que
ressecasse e morresse porque assim desejei. Aquela flor tão viva no meu olhar
afrontava o meu estado de espírito, a minha alma padecente. Na parede há só uma
moldura sem nada ao fundo. Rasguei o retrato que eternamente sorria. Mas nada
pude fazer com os escritos tomando as poucas paredes.
Certamente se
mostrará muito estranho ao olhar que se deparar com aqueles rabiscos. Houve um
tempo que não me restava nem mais uma folha de caderno, um pedaço de papel
sequer, então resolvi escrever meus poemas e epitáfios de outra maneira. Não
havia outra coisa a fazer. E assim lancei mão do carvão que se juntava das
brasas mortas e fui rabiscando as paredes, com letra miúda, vez que tinha muito
a escrever.
Os poemas
estão esparsos, porém todos tratam sobre uma face que sorri, depois se firma
impassível, para depois entristecer. E no entristecimento as dores tantas, as
lágrimas surgindo, a agonia e a aflição. Para depois lentamente sucumbir no
vazio da vida, restando somente os epitáfios ali também escritos. E num deles
se evidencia: A morte abriu a porta, chamou-me e parti. Que não chore o adeus
quem comigo não sorriu!
Do lado de
fora da casa, como daqui logo se pode ver, nada é muito diferente do que lá
dentro pode ser encontrado. Tudo tão pouco ou quase nada, mas de imensa
significação, ao menos para os que têm sentimentos. Tudo parece eterno outono,
tudo parece velho, entristecido e cheio de sombras. E também de segredos e
mistérios.
Mesmo com a
janela fechada há, no lado de fora do umbral, um ninho de passarinho que já
encontrei quando aqui cheguei. Só avistei o seu dono por duas vezes, a primeira
no dia seguinte que abri a janela, e a segunda no instante em que resolvi
fechá-la para sempre, e partir. Naquela primeira vez, lembro bem, pensei ter
ouvido o seu canto. Mas nesta última ele parecia mais entristecido que eu.
Juro que
jamais descobri o mistério que acoberta aquele ninho. Encontrei-o já
envelhecido, com gravetos parecendo de muitos anos, mas mesmo assim, depois de
tantos anos, ainda parecia o mesmo da última vez que o avistei. Também não sei
o motivo de aquele passarinho só ter aparecido duas vezes no percurso de tantos
anos. Mas um dia sonhei que somente mais uma vez o encontraria, e seria no dia
de minha despedida.
Quem estiver
lendo está carta talvez consiga avistar o passarinho e seu canto. Mas seria
melhor que não. É muito perigoso que vá até o umbral da janela e o encontre
repousando no seu ninho. E o seu canto será mortal, eis que o sonho me disse
que todo aquele que ouvir seu trinado tomará suas asas e partirá para jamais
voltar.
Verdade que
nunca ouvi o seu canto. Mas minha solidão e minha tristeza desejavam tanto
aquela canção que um dia resolvi ir procurá-lo onde pudesse encontrar. E fechei
a porta e a janela e saí por aí. Levei meu cantil de veneno e bebi.
Não sei se
ganhei asas e subi ou se permaneço espectro por aqui. Talvez encontre um dos
meus epitáfios escrito na madeira até bem pouco coberto por folhas secas.
Talvez eu ainda esteja aqui sentado observando a vida que não existe mais.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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