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domingo, 27 de abril de 2014

O japonês que virou Lampião

Por José Carlos Silvares

Achei estranho o nome daquele navio esperado no Porto de Santos: “Maria Bonita”. Achei mais estranho ainda quando soube que era um navio japonês, em viagem inaugural. Por que uma armadora japonesa daria um nome desses ao seu navio? Essa indagação ficou no ar durante uma semana, até que o navio chegasse ao porto. Fui a bordo saber. Era um navio reluzente, com o nome escrito em vistosas letras brancas no casco.

Ao subir as escadas rememorei alguns dados de dias atrás, quando passei os olhos em um livro sobre Lampião, estudei parte dos motivos que o levaram a ser o rei do Cangaço e li sobre a trajetória de Maria Bonita, sua fiel companheira até o dia em que o grupo foi morto e decapitado numa ação de policiais em Angico, no sertão de Sergipe.


Os cangaceiros e suas ações sempre dividiram opiniões, que vão de anjos a bandidos: tiravam dos ricos para dar aos pobres, tinham suas leis próprias e também matavam os que se opunham a eles. Mas é um fato real da história do Brasil.

Não queria chegar diante do comandante sem saber contar a ele ao menos alguns detalhes sobre a “heroína” que batizava o navio. Tinha certeza de que iria perguntar.

Um agente do navio, da companhia Wilson Sons, me levou ao escritório do capitão e, enquanto esperava, logo reparei na primeira representante feminina a bordo: uma delicada gueixa, vestida com seda vermelha e aplicações de dourado, uma boneca japonesa de cabelos negros e esticados, e que decorava o escritório numa caixa de vidro.

Aguardei uns minutos e lá veio um homem pequeno, de uniforme cáqui e parte da calça manchada de óleo. Depois das apresentações, finalmente estava ali, diante de mim, a pessoa certa para desvendar aquilo que para mim era um mistério: por que um navio japonês levava o nome da mulher do Lampião? 

Enfim, capitão, por que esse nome no seu navio? “Nome de mulher dá sorte”, disse-me ele, sorrindo, para depois informar que o navio faria a partir daquela viagem a linha marítima entre Japão e Brasil. “É um nome muito famoso no Brasil e minha companhia, a Mitsui Line, pretendeu fazer uma boa impressão ao escolher esse nome”.

E depois discorreu, contando que um diretor da empresa veio ao Brasil especialmente para estudar a história de Maria Bonita. Ficou um mês no Rio de Janeiro. Com certeza viu nas ruas muitas outras Marias bonitas.

Definiu o nome, submeteu à diretoria e a aprovação foi geral. Tanto que o presidente da Mitsui, quando chefiou em 1986 a cerimônia de batismo do navio no estaleiro da Mitsubishi Heavy Indústrias, em Kobe, no Japão, fez um breve histórico do nome e o que o Cangaço representou no Brasil.

Eles foram a fundo na pesquisa sobre Maria Bonita e Lampião. O capitão me revelou no seu inglês fluente: “A história tem dois lados. Há um lado de herói e um lado que não é bom”, disse, acionando um gatilho imaginável com o dedo indicador, “atirando” na direção do mar.

E disse mais, provando que conhecia aquela história: “Esse lado heroico de Lampião e Maria Bonita existe porque os dois são muito populares no Brasil”. Ao saber depois que Lampião pode ser popular, mas não é um herói oficial como Tiradentes, por exemplo, ele disparou: “Ele é um herói underground!”

Deixei o navio como havia entrado, mas, confesso, meio com o rabo entre as pernas. De nada adiantou ter estudado na véspera. O comandante sabia bem o que falar sobre o nome de seu belo navio.

Não achei necessário, mas como tinha estudado, queria ter dito a ele que Maria Bonita se chamava Maria de Oliveira, filha de Déa e José Felipe de Oliveira e que nasceu no norte da Bahia. Quando tinha 17 anos casou com um sapateiro e ficou com ele até conhecer Lampião, a quem seguiu entre 1929 e 28 de julho de 1938, a data da matança do bando.

Como o navio iria até Buenos Aires e retornaria em uma semana, resolvi fazer uma surpresa ao capitão, com a permissão do jornal onde trabalhava. Mandamos ampliar e enquadrar uma grande fotografia de “Maria Bonita”, com seu chapéu típico e dois cinturões com cartuchos cruzados no peito. No meio do quadro, uma chapa com o nome dela.

No dia em que o navio voltou ao porto fui até lá, com o quadro debaixo do braço. O capitão me recebeu para almoçar. E, então, numa cerimônia simples, acompanhada do agente da Wilson Sons, entreguei o quadro. Ele desfez o pacote e arregalou seus olhos miúdos, numa expressão de surpresa. Parece ter gostado do que viu. E mandou colocar o quadro na parede principal do seu escritório.

Na hora da foto ao lado do quadro, ele pediu para substituir o uniforme cáqui que usava. Correu para vestir um uniforme branco, impecável, de gala, tirou a foto segurando o quadro e saiu-se com esta: “Agora eu sou o Lampião”.

O “Maria Bonita” existiu com esse nome até o dia 30 de dezembro de 1999. Ele foi vendido para outra armadora e já no dia 31 ganhou a bandeira da ilha de Malta (no Mediterrâneo) e um novo nome: “Gant Star”. Navegou assim até recentemente, 1º. de Janeiro de 2010. No dia 2 já estava com a bandeira das ilhas São Vicente e Granadinas (no Caribe) e com o nome “Smart Sail”, a singrar os sertões marítimos de sua linha.

Não sei aonde foi parar o quadro da Maria Bonita. Com certeza o navio está sem o retrato a bordo, substituído por algum daqueles quadros de natureza morta.

Mas, para mim, o navio continua sendo o “Maria Bonita”. E certamente também para o comandante “Lampião Matsumoto”. 

http://www.jornaldaorla.com.br/noticias/6073-o-japones-que-virou-lampiao/

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