Por Publicado em 26/04/2014 por Rostand Medeiros
Análise de
ossadas revela o perfil de doenças que atingiram diferentes populações do Rio
de Janeiro entre os séculos XVII e XIX
Ossada no Cemitério dos Pretos Novos: parte dos escravos já chegava ao Brasil com a bactéria da tuberculose – Foto – Léo Ramos
SALVADOR
NOGUEIRA e RICARDO ZORZETTO | Edição 211 – Setembro de 2013 – FONTE – http://revistapesquisa.fapesp.br/2013/09/12/a-saude-nos-tempos-do-imperador/
Uma equipe de
pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) está decifrando as condições
de saúde da população do Rio de Janeiro nos períodos colonial e imperial. E
dois resultados obtidos recentemente chamam a atenção. O primeiro é que as
doenças causadas por vermes eram bastante disseminadas: afetavam os pobres, que
sabidamente viviam em ambientes insalubres, e também os ricos, que em princípio
estariam mais protegidos por disporem de melhores condições sanitárias. Já o segundo
resultado atribui uma possível nova origem para a tuberculose dos escravos
africanos. Apresentado em maio deste ano na revista Emerging Infectious
Diseases, ele indica que ao menos parte dos negros já teria chegado ao Brasil
com a infecção, e não se contaminado depois de aportar no Rio, a então capital
do país.
O grupo
coordenado pela bióloga Alena Mayo Iñiguez na Fiocruz chegou a essas conclusões
depois de realizar análises genéticas e parasitológicas em esqueletos humanos
encontrados nos últimos anos em três sítios arqueológicos do Rio: o cemitério
dos Pretos Novos, o da Praça XV e o da Igreja Nossa Senhora do Carmo. Hoje
confinados em uma área relativamente pequena no centro da capital fluminense –
o da Praça XV e o do Carmo ficam a poucas quadras de distância um do outro, na
área mais central da cidade, enquanto o dos Pretos Novos está a cerca de 2
quilômetros a noroeste dali, na zona portuária –, esses antigos cemitérios
receberam no passado os restos mortais de pessoas de origens sociais bem distintas.
Por essa razão, as informações extraídas dessas ossadas permitem agora entender
melhor como viviam e morriam os moradores do que foi o maior e mais importante
centro comercial do país nos períodos colonial e imperial.
Nos séculos
XVIII e XIX o cemitério da Praça XV de Novembro recebeu corpos de pessoas de
todas as classes sociais, sobretudo das que morriam durante as epidemias,
motivo pelo qual ele dá uma ideia geral do estado de saúde da população carioca
na época. “Nessas ossadas identificamos marcadores genéticos de ameríndios,
europeus e africanos”, conta Alena, pesquisadora do Laboratório de Biologia de
Tripanosomatídeos do Instituto Oswaldo Cruz, da Fiocruz, e coordenadora dos
estudos.
Cemitério
nobre: sítio arqueológico na Igreja de Nossa Senhora do Carmo, onde eram
enterrados os abastados – Foto – Léo Ramos
A análise do
material coletado de 10 pessoas mostrou que 80% delas apresentavam infecção por
parasitas intestinais – em especial, vermes e protozoários. Os parasitas mais
comuns eram os vermes do gênero Trichuris. De corpo alongado e com até 4
centímetros de comprimento, esses vermes vivem nos intestinos e, em grande
número, podem causar sangramentos e anemia – além deTrichuris, também foram
achados ovos de tênia e de lombriga. O grupo de Alena encontrou ovos de Trichuris em
70% das amostras estudadas. De acordo com os pesquisadores, essa taxa de
infecção é até conservadora, uma vez que o material havia sido lavado antes de
ser analisado. No caso dos cemitérios da Praça XV e dos Pretos Novos, o grupo
da Fiocruz teve de trabalhar com o material coletado em operações de salvamento
arqueológico, parte encontrada durante as obras de revitalização da zona
portuária da cidade, enquanto na Igreja de Nossa Senhora do Carmo, a antiga Sé
do Rio, as amostras foram analisadas no próprio local em que foram encontradas
durante a restauração do prédio em 2007. “Fizemos a coleta com foco na pesquisa
genética”, conta Alena. Depois de estudados, os ossos foram reenterrados.
Na Igreja
Nossa Senhora do Carmo, onde entre os séculos XVII e XIX eram sepultados os
mortos das famílias abastadas, em geral de origem europeia, a taxa de infecção
foi de apenas 12%. Apesar de mais baixo, o número surpreendeu os pesquisadores.
“A variedade de parasitas encontrada ali é igual à observada na Praça XV”, diz
Alena. “Isso mostra que todos, ricos e pobres, estavam expostos ao mesmo
ambiente e aos mesmos riscos.”
Doença de
europeu
No caso da
tuberculose, porém, os pesquisadores encontraram um padrão oposto ao das
verminoses. A doença pulmonar causada pela bactéria Mycobacterium
tuberculosis era bem mais comum entre as pessoas mais ricas do que entre
as pobres. A farmacêutica Lauren Jaeger, aluna de doutorado de Alena, e o
restante da equipe identificaram material genético da bactéria da tuberculose
nos restos humanos de 17 dos 32 indivíduos (quase todos descendentes de
europeus) encontrados na Igreja Nossa Senhora do Carmo e identificados pela
equipe do arqueólogo Ondemar Dias, do Instituto de Arqueologia Brasileira. Já
entre os negros enterrados no Cemitério dos Pretos Novos a taxa de infecção por
tuberculose foi de 25%, segundo estudo feito em parceria com a paleopatologista
Sheila de Souza, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fiocruz.
Na opinião dos
pesquisadores, a frequência maior de tuberculose entre os descendentes de
europeus condiz com a situação histórica, já que naquele período a prevalência
da enfermidade era alta na Europa. “Os europeus exerceram um papel importante
na disseminação dessa doença no Novo Mundo”, conta Alena.
Embora não se
possa negar a influência europeia no espalhamento da tuberculose, a análise dos
restos mortais dos escravos enterrados no Cemitério dos Pretos Novos está levando
os pesquisadores a repensar uma crença antiga: a de que a África era um
continente livre da enfermidade e que os escravos trazidos para o Brasil só se
infectaram aqui.
Morte ao
chegar
Redescoberto
em 1996 durante a reforma de uma casa no bairro da Gamboa, quando operários
abriram sondagens para fazer o alicerce e encontraram milhares de dentes e
fragmentos de ossos humanos, o Cemitério dos Pretos Novos recebeu de 1769 a
1830 os negros que morriam durante a longa travessia do Atlântico ou logo
depois de aportar no país. Nesse cemitério, os corpos eram atirados em valas
comuns, pouco profundas. Muitas vezes eram macerados com tocos de madeira, o
que torna a identificação dos esqueletos difícil – uma análise do material
realizada pela equipe do bioantropólogo Ricardo Ventura Santos sugere que a
maioria dos ossos encontrados ali era de homens que morreram quando tinham
entre 18 e 25 anos de idade (ver Pesquisa
FAPESP nº 190).
Igreja de
Nossa Senhora do Carmo, no Rio de Janeiro – Foto – Léo Ramos
“Como esses
escravos nem saíam do porto, só podem ter vindo infectados”, diz Sheila,
coautora do estudo publicado na Emerging Infectious Diseases. “Essa
condição de portadores da bactéria certamente aumentava o risco de essas
pessoas adoecerem mais tarde, sob as duras condições de vida que levavam em
regime de escravidão.” Até o momento, porém, não é possível saber se o contágio
ocorreu no contato com os europeus na África ou mesmo antes, com cepas mais
antigas da bactéria que já poderiam circular por lá.
Alena e seu
grupo esperam encontrar a resposta para essa dúvida nos próximos anos. Para
isso precisam aplicar testes moleculares que permitam comparar o DNA das
bactérias encontradas nos restos mortais do Cemitério dos Pretos Novos com as
de cepas modernas da doença. “Estamos adaptando algumas técnicas de biologia
molecular para trabalhar com o material antigo”, diz Alena. “Além de permitir
identificar os parasitas que afetavam aquelas populações, o estudo das
sequências de DNA permite fazer uma análise da evolução [desses patógenos] e
comparar com bactérias que circulam hoje.”
Artigos
científicos
JAEGER, L.H. et al. Mycobacterium tuberculosis complex in remains of 18th–19th century slaves, Brazil. Emerging Infectious Diseases. v. 19, n.5. 5 mai. 2013.
JAEGER, L.H. et al. Paleoparasitological analysis of human remains from a European cemetery of the 17th–19th century in Rio de Janeiro, Brazil. International Journal of Paleopathology. 20 mai. 2013.
JAEGER, L.H. et al. Paleoparasitological results from XVIII century human remains from Rio de Janeiro, Brazil. Acta Tropica. v. 125, n.3, p. 282-286. mar. 2013.
JAEGER, L.H. et al. Mycobacterium tuberculosis complex detection in human remains: tuberculosis spread since the 17th century in Rio de Janeiro, Brazil.Infection, Genetics and Evolution. v. 12, n.4, p. 642-648. jun. 2012.
JAEGER, L.H. et al. Mycobacterium tuberculosis complex in remains of 18th–19th century slaves, Brazil. Emerging Infectious Diseases. v. 19, n.5. 5 mai. 2013.
JAEGER, L.H. et al. Paleoparasitological analysis of human remains from a European cemetery of the 17th–19th century in Rio de Janeiro, Brazil. International Journal of Paleopathology. 20 mai. 2013.
JAEGER, L.H. et al. Paleoparasitological results from XVIII century human remains from Rio de Janeiro, Brazil. Acta Tropica. v. 125, n.3, p. 282-286. mar. 2013.
JAEGER, L.H. et al. Mycobacterium tuberculosis complex detection in human remains: tuberculosis spread since the 17th century in Rio de Janeiro, Brazil.Infection, Genetics and Evolution. v. 12, n.4, p. 642-648. jun. 2012.
Extraído do blog Tok de História do historiógrafo e pesquisador do cangaço Rostand medeiros
http://tokdehistoria.wordpress.com/
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário