Por: Antônio Fernando de Araújo Sá
Nas viagens realizadas nos sertões do Nordeste brasileiro e da consulta a uma
série de jornais e livros, percebemos, em cada Estado ou cidade, nas quais se
registrou a passagem do bando de Lampião, uma certa preocupação em demarcar na
geografia do cangaço a especificidade de sua participação no fenômeno social do cangaço.
Isto ficou evidente nas atividades comemorativas - seminários, projeção de filmes,
apresentação de peças de teatro e festas – alusivas ao centenário de nascimento
de Lampião (1997-1998), que se realizaram em várias cidades nordestinas como Juazeiro do Norte, no
Ceará, Triunfo e Serra Talhada, em Pernambuco, Paulo Afonso, na Bahia, e Poço
Redondo, em Sergipe.
Estes eventos
comemorativos em torno da figura de Lampião possibilitam-nos pensar num campo
de pesquisas ainda inexplorado pelos historiadores do cangaço: a compreensão do
funcionamento do imaginário social e de seus mecanismos de apropriação dos acontecimentos históricos.
A propósito,
este pequeno texto visa discutir, através de entrevistas realizadas nos
povoados e municípios da região de Poço Redondo, como os confrontos simbólicos
entre os diferentes sujeitos históricos resultaram em diferentes memórias em torno do
cangaço, demarcando-o como elemento constitutivo da identidade regional. Assim sendo,
destas disputas em torno do passado e do presente da região emergiram questões
políticas que acabaram por definir uma “política de memória” em torno do cangaço.
O CASO DA
PRAÇA LAMPIÃO EM POÇO REDONDO
Na região do
Baixo São Francisco, encontramos duas cidades – Piranhas, em Alagoas, e Poço Redondo, em Sergipe – que têm suas trajetórias, fortemente,
marcadas pela presença do cangaço. Luitgarde Barros adverte-nos que devemos tomar cuidado com
os depoimentos dos habitantes de Piranhas e, acrescentaríamos, de Poço Redondo,
pois, de tanto repetirem suas histórias para jornalistas, escritores e cinegrafistas,
eles às vezes acabam por incorporar às suas memórias lembranças que não foram vividas por
eles, tornando-se testemunho de fatos jamais vivenciados. Esse comportamento faz com
que o pesquisador elabore um registro minucioso dos relatos de cada colaborador, para
a comparação de dados das entrevistas.
A pesquisadora busca a utilização dos depoimentos orais como instrumentos para preencher as lacunas deixadas pelas fontes escritas. Daí a preocupação de se
garantir ao máximo a veracidade e a objetividade dos depoimentos orais, excluindo possíveis distorções. Contudo, nossa proposta difere dessa perspectiva na medida em que
privilegia o estudo das representações, atribuindo, assim, um papel central às relações
entre história e memória. Queremos perceber os usos políticos do passado pelos
grupos sociais atuantes no sertão nordestino, numa espécie de confronto de memórias em torno do cangaço.
Portanto, faremos uma incursão na história das metamorfoses da memória, tomando a memória coletiva como objeto de estudo.
Em sua trajetória histórica, a cidade de Piranhas sofreu o ataque o cangaceiro
Gato e seu bando em 1936, na tentativa de resgatar sua companheira Inacinha, que havia
sido presa na fazenda Picos pela volante comandada pelo Tenente João Bezerra. Foi essa
mesma volante que deu cabo do bando de Lampião na Grota de Angico, em 28 de julho de
1938, também partindo da cidade de Piranhas. Essa cidade ainda vivenciou o pânico e o
terror quando da chegada de um bilhete de Corisco para o Tenente João Bezerra, que,
como vingança da morte de Lampião, mandou, junto ao bilhete, as cabeças da família
de Domingos Ventura, vaqueiro da fazenda Patos, suposto traidor que originou o
massacre de Angicos5.
As lembranças desse tempo do cangaço estão depositadas no Museu do Sertão, com sede na antiga Estação Ferroviária de Piranhas. Instituído pelo governo
estadual em 13 de novembro de 1986, o Museu possui em sua coleção, além de objetos do cotidiano
sertanejo, um conjunto de fotografias e recortes de jornais da época do cangaço
proveniente do acervo do professor Frederico Pernambuco de Mello, da Fundação Joaquim Nabuco.
Entretanto, como outros lugares de memória da região, encontra-se em condições precárias de funcionamento.
Na outra
margem do rio São Francisco, o município de Poço Redondo também tem sua trajetória histórica marcada pelo fenômeno social do cangaço, por conta da
intensa presença do bando de Lampião na região ao longo dos anos 1930. Algumas imagens
dessa passagem de Lampião marcaram indelevelmente a memória dos sertanejos de Poço Redondo como o “Fogo de Maranduba”, em 1932, a morte de Lampião, em 1938, e a ascensão e queda do ex-cangaceiro Cajazeira, “Zé de Julião”, na política local
nos anos 1950. Por outro lado, na cidade, encontramos ainda remanescentes do cangaço
como Manoel Félix da Cruz, um dos coiteiros de Lampião mais famosos na região.
A
institucionalização da Praça Lampião (1988-1998), localizada na cidade de Poço Redondo, em Sergipe, trouxe consigo elementos fundamentais para se entender
como as disputas político-ideológicas em torno do cangaço se fazem presentes na região,
revelando a importância de “lugares de memória” neste campo de disputa, especialmente
pelo fato da praça aparecer como espaço privilegiado para o estudo da História Local.
Dentro das
comemorações do cinqüentenário de morte de Lampião, houve um abaixo-assinado para a legalização da praça, com cerca de 300 assinaturas.
Liderados por Raimundo E. Cavalcanti e Manoel Dionízio da Cruz, militantes do movimento
popular e sindical preocupados em resgatar a memória do cangaço, o documento foi
encaminhado à Câmara de Vereadores6. Após sua aprovação, a praça foi inaugurada em julho de
1988, com a presença do então prefeito da cidade, Alcino Alves Costa, sendo, então,
batizada pela população da cidade como “murinho de Lampião”. Segundo Raimundo Eliete
Cavalcanti “o Murinho era tão disputado que a população assumiu como sendo (...) um espaço importante da cidade”7. Portanto, tornou-se um “lugar de memória” do município.
Campo de disputa em torno da memória do cangaço em Poço Redondo, a Praça Lampião, em 1993, teve sua existência questionada pelo então prefeito Ivan
Rodrigues Rosa, sob o argumento de que ela lembrava o nome de um bandido e que não era
digna da cidade. Articulado com o juiz de Direito, Pedro Alcântara, o prefeito da cidade
convocou um grupo de vaqueiros para uma filmagem da TV Sergipe, retransmissora da TV
Globo, no sentido de receber apoio para a derrubada da Praça.
Como forma de
se contrapor a esta iniciativa, Manoel Dionízio da Cruz e Raimundo E. Cavalcanti organizaram uma exposição de documentos nacionais e locais, com o
intuito de demonstrar a importância do cangaço para a cidade. Com o apoio de
estudantes, professores e da comunidade de Poço Redondo, Dionízio enfrentou um debate
acalorado
com o juiz de Direito, Pedro Alcântara, e o líder político local, Durval Rodrigues Rosa, pai do então prefeito da cidade. Durante a polêmica, Dionízio argumentou que a Praça só seria derrubada se houvesse um plebiscito na cidade. Vencidos pela mobilização popular em torno da importância do cangaço para a cidade, explicitada pela presença na cultura local de grupos de teatro, de xaxado, além do Centro de Cultura Popular Zé de Julião, os opositores ao monumento realizaram ainda depredações ao monumento. Contudo, ficou mantida a homenagem da cidade a Lampião8.
com o juiz de Direito, Pedro Alcântara, e o líder político local, Durval Rodrigues Rosa, pai do então prefeito da cidade. Durante a polêmica, Dionízio argumentou que a Praça só seria derrubada se houvesse um plebiscito na cidade. Vencidos pela mobilização popular em torno da importância do cangaço para a cidade, explicitada pela presença na cultura local de grupos de teatro, de xaxado, além do Centro de Cultura Popular Zé de Julião, os opositores ao monumento realizaram ainda depredações ao monumento. Contudo, ficou mantida a homenagem da cidade a Lampião8.
Nas palavras de Raimundo Cavalcanti:
“No dia 28 de julho de 1993, como estava contando, houve aqui uma disputa bem acirrada em torno do símbolo (...) desse espaço, se realmente era público ou privado. Então, através da coordenação de Dionízio, nós conseguimos que a população se posicionasse firmemente em favor da memória de Lampião e do
espaço que é do povo”.
É interessante observar que esta disputa em torno da memória do cangaço tem uma evidente vinculação com a política local, na medida em que encontramos, de um
lado, uma clara tentativa de negligenciar a forte presença dos cangaceiros na região,
caracterizando-o como bandidos e facínoras, destacando-se a liderança política conservadora do
ex-prefeito Ivan Rodrigues Rosa, filho de Durval Rodrigues Rosa que, por sua vez, foi
coiteiro de Lampião e, sob tortura, junto com seu irmão, Pedro de Cândido, levou a volante
do tenente João Bezerra para dar cabo do bando de Lampião na Grota de Angico.
Por outro
lado, temos Manoel Dionízio da Cruz, militante sindical e ex-presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT) de Sergipe, descendente da Família
Félix (Júlio e Manoel Félix da Cruz), coiteiros históricos de Lampião e seu bando, que
busca, junto com outros companheiros como Raimundo E. Cavalcanti, resgatar a rebeldia cangaceira
contra o coronelismo do início do século XX como cimento ideológico para as lutas em
torno da reforma agrária no município de Poço Redondo. Nesta perspectiva, vale registrar
que também outros movimentos de rebeldia camponesa são veiculados no discurso das lideranças da esquerda local, como a existência de quilombos na Serra da Guia e
a passagem de Antônio Conselheiro pelo povoado de Curralinho, na tentativa de
criar uma
“tradição rebelde” na região.
“tradição rebelde” na região.
Em 1998, na
gestão do prefeito Enoque do Salvador foi reinaugurada, toda reformada, a Praça Lampião. Liderança surgida no contexto da atuação da
Comissão Pastoral da Terra no Baixo São Francisco nos anos 70 e 80, sob a coordenação do
Bispo de Propriá, Dom José Brandão de Castro, o padre Enoque do Salvador se destacou na
luta pela conquista da terra dos índios Xocó na Ilha de São Pedro, no município de Porto
da Folha, e da ocupação de Santana dos Frades, em Pacatuba/SE, da Fazenda Barra da Onça, em
Poço Redondo. Sua eleição galvanizou todos os setores progressistas da região como
forma de interromper o ciclo conservador que se instaurou em Poço Redondo desde os anos
50, sob a
liderança de Durval Rodrigues Rosa.
liderança de Durval Rodrigues Rosa.
Cônscio da
importância do resgate da memória, o prefeito Enoque do Salvador contou com a participação decisiva do geógrafo Raimundo E. Cavalcanti, então coordenador de cultura da Prefeitura Municipal de Poço Redondo, na
reinauguração do monumento, em julho de 1998, quando das comemorações do centenário de
nascimento de Lampião e dos 60 anos de sua morte. Nessa reforma foram inseridas informações
históricas de Lampião sobre a sua trajetória no município, desde o Fogo de Maranduba até o Massacre da Grota do Angico. Neste sentido, buscou-se demarcá-los como lugares
de memória, através de veiculação de um mapa, objetivando torná-los como pontos
histórico-turísticos do município. Vale lembrar que a Grota de Angico é uma
área tombada como patrimônio histórico-cultural pela Constituição Estadual de 5
de outubro de 1989, no seu artigo 229. Ainda segundo Raimundo Cavalcanti, “esse espaço é muito importante,
porque, além de servir de atrativo turístico pra o município de Poço Redondo, é também
um testemunho de um pedaço da história do Nordeste e que tem uma dimensão muito importante da vida da população local”.
Neste mesmo ano instituiu-se, ao lado do I Seminário sobre a História do
Cangaço, com debates e exposições, a celebração da Missa para Lampião na Grota de Angico
no dia 28 de julho, na data e local onde Lampião morreu. Com a presença de familiares
de Lampião, ex-cangaceiros sobreviventes, ex-volantes e ex-coiteiros, a missa teve
uma clara tônica política, diante das palavras do padre Eraldo Cordeiro: “Os covardes não
ficam na história. Aqui, em Angico, terminou um movimento social que abalou o país por
muitos anos. O Cangaço não existia (sic), se houvesse justiça no país e agora, neste
lugar onde Lampião foi morto há 60 anos, vamos pedir a Deus, que ilumine os homens
poderosos do Brasil de hoje, para haver bom senso nas decisões políticas, pois em cada
nordestino, pulsa um Virgulino sentindo falta de luz”. Ainda segundo o padre, o “Nordeste
continua sofrido, discriminado, esperando dias melhores, tal qual nos tempos do
Cangaço”10.
Emerge aqui uma memória anti-volante, através de um discurso legitimador do cangaço, com base no conceito de “escudo ético”, tal como proposto por Frederico
Pernambucano de Melo, na medida em que os cangaceiros enfrentavam a injustiça
social dos tempos do coronelismo e buscavam vingar alguma afronta a sua honra. Ao
caracterizálo como movimento social, o padre se aproxima da leitura marxista do cangaço, cuja
matriz está presente nas obras de Rui Facó e Eric Hobsbawn. Segundo seu discurso, a
atualidade da rebeldia do cangaço é reforçada pela permanência das precárias
condições sociais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As disputas da
memória do cangaço devem ser inseridas na perspectiva de que as pessoas, grupos e povos procuram reinventar referenciais esquecidos ou
silenciados. Há, assim, uma politização da memória, fazendo com a presença de múltiplas memórias subterrâneas obriguem aos poderes a negociarem sua legitimidade.
Neste sentido, diversos grupos sociais atuantes no sertão do Nordeste
brasileiro buscam construir sua leitura sobre o fenômeno, de um lado, a partir de um viés
social, de clara influência do marxismo e do pensamento de esquerda no Brasil, tentando
demonstrar sua atualidade no contexto das lutas sociais na contemporaneidade e, de outro,
através
daquilo que a profª. Luitgarde Barros chamou de uma “memória volante” e anti-cangaceira, presente nos livros e depoimentos das antigas volantes e de seus descendentes, da qual a autora claramente simpatiza.
daquilo que a profª. Luitgarde Barros chamou de uma “memória volante” e anti-cangaceira, presente nos livros e depoimentos das antigas volantes e de seus descendentes, da qual a autora claramente simpatiza.
Como
alerta-nos M. Wiesebron, as memórias publicadas a partir dos anos 70 por pessoas ligadas diretamente ao cangaço – ex-cangaceiros, ex-volantes,
ex-militares – ou seus descendentes devem ser lidas com bastante cuidado, pois, em grande parte,
percebe-se evidente influência dos debates historiográficos produzidos em torno do tema, principalmente da obra de Eric Hobsbawn, como é o caso de Sila.
Aqui a questão da identidade emerge como um dos fundamentos da luta política e ideológica no sertão, na medida em que os grupos sociais reivindicam
incessantemente seus espaços e a identidade nacional já não dá conta da multiplicidade de memórias subterrâneas, que trazem para a historiografia as lembranças dos excluídos.
Portanto, procuramos demonstrar que o cangaço não se tornou história, é ainda memória, campo de luta pelo presente e ferida aberta nas lutas políticas do Nordeste brasileiro, como se evidenciou no caso da luta política em torno da Praça Lampião, em Poço Redondo.
Antonio Fernando Departamento de História/Universidade Federal de Sergipe; Doutor em História Cultural pela Universidade de Brasília; coordenador do Grupo de Pesquisa História Popular do Nordeste (UFS/CNPq).
Foto: Fonte Google
Fonte:
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Página:
Voltaseca Volta
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