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segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

A PRAÇA LAMPIÃO, EM POÇO REDONDO-SE ( Série grandes artigos ) O CANGAÇO NAS BATALHAS DA MEMÓRIA

Por: Antônio Fernando de Araújo Sá

Nas viagens realizadas nos sertões do Nordeste brasileiro e da consulta a uma série de jornais e livros, percebemos, em cada Estado ou cidade, nas quais se registrou a passagem do bando de Lampião, uma certa preocupação em demarcar na geografia do cangaço a especificidade de sua participação no fenômeno social do cangaço. Isto ficou evidente nas atividades comemorativas - seminários, projeção de filmes, apresentação de peças de teatro e festas – alusivas ao centenário de nascimento de Lampião (1997-1998), que se realizaram em várias cidades nordestinas como Juazeiro do Norte, no Ceará, Triunfo e Serra Talhada, em Pernambuco, Paulo Afonso, na Bahia, e Poço Redondo, em Sergipe.

Estes eventos comemorativos em torno da figura de Lampião possibilitam-nos pensar num campo de pesquisas ainda inexplorado pelos historiadores do cangaço: a compreensão do funcionamento do imaginário social e de seus mecanismos de apropriação dos acontecimentos históricos.

A propósito, este pequeno texto visa discutir, através de entrevistas realizadas nos povoados e municípios da região de Poço Redondo, como os confrontos simbólicos entre os diferentes sujeitos históricos resultaram em diferentes memórias em torno do cangaço, demarcando-o como elemento constitutivo da identidade regional. Assim sendo, destas disputas em torno do passado e do presente da região emergiram questões políticas que acabaram por definir uma “política de memória” em torno do cangaço.


O CASO DA PRAÇA LAMPIÃO EM POÇO REDONDO

Na região do Baixo São Francisco, encontramos duas cidades – Piranhas, em Alagoas, e Poço Redondo, em Sergipe – que têm suas trajetórias, fortemente, marcadas pela presença do cangaço. Luitgarde Barros adverte-nos que devemos tomar cuidado com os depoimentos dos habitantes de Piranhas e, acrescentaríamos, de Poço Redondo, pois, de tanto repetirem suas histórias para jornalistas, escritores e cinegrafistas, eles às vezes acabam por incorporar às suas memórias lembranças que não foram vividas por eles, tornando-se testemunho de fatos jamais vivenciados. Esse comportamento faz com que o pesquisador elabore um registro minucioso dos relatos de cada colaborador, para a comparação de dados das entrevistas.

A pesquisadora busca a utilização dos depoimentos orais como instrumentos para preencher as lacunas deixadas pelas fontes escritas. Daí a preocupação de se garantir ao máximo a veracidade e a objetividade dos depoimentos orais, excluindo possíveis distorções. Contudo, nossa proposta difere dessa perspectiva na medida em que privilegia o estudo das representações, atribuindo, assim, um papel central às relações entre história e memória. Queremos perceber os usos políticos do passado pelos grupos sociais atuantes no sertão nordestino, numa espécie de confronto de memórias em torno do cangaço. Portanto, faremos uma incursão na história das metamorfoses da memória, tomando a memória coletiva como objeto de estudo.

Em sua trajetória histórica, a cidade de Piranhas sofreu o ataque o cangaceiro Gato e seu bando em 1936, na tentativa de resgatar sua companheira Inacinha, que havia sido presa na fazenda Picos pela volante comandada pelo Tenente João Bezerra. Foi essa mesma volante que deu cabo do bando de Lampião na Grota de Angico, em 28 de julho de 1938, também partindo da cidade de Piranhas. Essa cidade ainda vivenciou o pânico e o terror quando da chegada de um bilhete de Corisco para o Tenente João Bezerra, que, como vingança da morte de Lampião, mandou, junto ao bilhete, as cabeças da família de Domingos Ventura, vaqueiro da fazenda Patos, suposto traidor que originou o massacre de Angicos5.

As lembranças desse tempo do cangaço estão depositadas no Museu do Sertão, com sede na antiga Estação Ferroviária de Piranhas. Instituído pelo governo estadual em 13 de novembro de 1986, o Museu possui em sua coleção, além de objetos do cotidiano sertanejo, um conjunto de fotografias e recortes de jornais da época do cangaço proveniente do acervo do professor Frederico Pernambuco de Mello, da Fundação Joaquim Nabuco. Entretanto, como outros lugares de memória da região, encontra-se em condições precárias de funcionamento.

Na outra margem do rio São Francisco, o município de Poço Redondo também tem sua trajetória histórica marcada pelo fenômeno social do cangaço, por conta da intensa presença do bando de Lampião na região ao longo dos anos 1930. Algumas imagens dessa passagem de Lampião marcaram indelevelmente a memória dos sertanejos de Poço Redondo como o “Fogo de Maranduba”, em 1932, a morte de Lampião, em 1938, e a ascensão e queda do ex-cangaceiro Cajazeira, “Zé de Julião”, na política local nos anos 1950. Por outro lado, na cidade, encontramos ainda remanescentes do cangaço como Manoel Félix da Cruz, um dos coiteiros de Lampião mais famosos na região.

A institucionalização da Praça Lampião (1988-1998), localizada na cidade de Poço Redondo, em Sergipe, trouxe consigo elementos fundamentais para se entender como as disputas político-ideológicas em torno do cangaço se fazem presentes na região, revelando a importância de “lugares de memória” neste campo de disputa, especialmente pelo fato da praça aparecer como espaço privilegiado para o estudo da História Local.

Dentro das comemorações do cinqüentenário de morte de Lampião, houve um abaixo-assinado para a legalização da praça, com cerca de 300 assinaturas. Liderados por Raimundo E. Cavalcanti e Manoel Dionízio da Cruz, militantes do movimento popular e sindical preocupados em resgatar a memória do cangaço, o documento foi encaminhado à Câmara de Vereadores6. Após sua aprovação, a praça foi inaugurada em julho de 1988, com a presença do então prefeito da cidade, Alcino Alves Costa, sendo, então, batizada pela população da cidade como “murinho de Lampião”. Segundo Raimundo Eliete Cavalcanti “o Murinho era tão disputado que a população assumiu como sendo (...) um espaço importante da cidade”7. Portanto, tornou-se um “lugar de memória” do município.

Campo de disputa em torno da memória do cangaço em Poço Redondo, a Praça Lampião, em 1993, teve sua existência questionada pelo então prefeito Ivan Rodrigues Rosa, sob o argumento de que ela lembrava o nome de um bandido e que não era digna da cidade. Articulado com o juiz de Direito, Pedro Alcântara, o prefeito da cidade convocou um grupo de vaqueiros para uma filmagem da TV Sergipe, retransmissora da TV Globo, no sentido de receber apoio para a derrubada da Praça.

Como forma de se contrapor a esta iniciativa, Manoel Dionízio da Cruz e Raimundo E. Cavalcanti organizaram uma exposição de documentos nacionais e locais, com o intuito de demonstrar a importância do cangaço para a cidade. Com o apoio de estudantes, professores e da comunidade de Poço Redondo, Dionízio enfrentou um debate acalorado
com o juiz de Direito, Pedro Alcântara, e o líder político local, Durval Rodrigues Rosa, pai do então prefeito da cidade. Durante a polêmica, Dionízio argumentou que a Praça só seria derrubada se houvesse um plebiscito na cidade. 
Vencidos pela mobilização popular em torno da importância do cangaço para a cidade, explicitada pela presença na cultura local de grupos de teatro, de xaxado, além do Centro de Cultura Popular Zé de Julião, os opositores ao monumento realizaram ainda depredações ao monumento. Contudo, ficou mantida a homenagem da cidade a Lampião8.

Nas palavras de Raimundo Cavalcanti:

“No dia 28 de julho de 1993, como estava contando, houve aqui uma disputa bem acirrada em torno do símbolo (...) desse espaço, se realmente era público ou privado. Então, através da coordenação de Dionízio, nós conseguimos que a população se posicionasse firmemente em favor da memória de Lampião e do
espaço que é do povo”.

É interessante observar que esta disputa em torno da memória do cangaço tem uma evidente vinculação com a política local, na medida em que encontramos, de um lado, uma clara tentativa de negligenciar a forte presença dos cangaceiros na região, caracterizando-o como bandidos e facínoras, destacando-se a liderança política conservadora do ex-prefeito Ivan Rodrigues Rosa, filho de Durval Rodrigues Rosa que, por sua vez, foi coiteiro de Lampião e, sob tortura, junto com seu irmão, Pedro de Cândido, levou a volante do tenente João Bezerra para dar cabo do bando de Lampião na Grota de Angico.

Por outro lado, temos Manoel Dionízio da Cruz, militante sindical e ex-presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT) de Sergipe, descendente da Família Félix (Júlio e Manoel Félix da Cruz), coiteiros históricos de Lampião e seu bando, que busca, junto com outros companheiros como Raimundo E. Cavalcanti, resgatar a rebeldia cangaceira contra o coronelismo do início do século XX como cimento ideológico para as lutas em torno da reforma agrária no município de Poço Redondo. Nesta perspectiva, vale registrar que também outros movimentos de rebeldia camponesa são veiculados no discurso das lideranças da esquerda local, como a existência de quilombos na Serra da Guia e a passagem de Antônio Conselheiro pelo povoado de Curralinho, na tentativa de criar uma
“tradição rebelde” na região.

Em 1998, na gestão do prefeito Enoque do Salvador foi reinaugurada, toda reformada, a Praça Lampião. Liderança surgida no contexto da atuação da Comissão Pastoral da Terra no Baixo São Francisco nos anos 70 e 80, sob a coordenação do Bispo de Propriá, Dom José Brandão de Castro, o padre Enoque do Salvador se destacou na luta pela conquista da terra dos índios Xocó na Ilha de São Pedro, no município de Porto da Folha, e da ocupação de Santana dos Frades, em Pacatuba/SE, da Fazenda Barra da Onça, em Poço Redondo. Sua eleição galvanizou todos os setores progressistas da região como forma de interromper o ciclo conservador que se instaurou em Poço Redondo desde os anos 50, sob a
liderança de Durval Rodrigues Rosa.

Cônscio da importância do resgate da memória, o prefeito Enoque do Salvador contou com a participação decisiva do geógrafo Raimundo E. Cavalcanti, então coordenador de cultura da Prefeitura Municipal de Poço Redondo, na reinauguração do monumento, em julho de 1998, quando das comemorações do centenário de nascimento de Lampião e dos 60 anos de sua morte. Nessa reforma foram inseridas informações históricas de Lampião sobre a sua trajetória no município, desde o Fogo de Maranduba até o Massacre da Grota do Angico. Neste sentido, buscou-se demarcá-los como lugares de memória, através de veiculação de um mapa, objetivando torná-los como pontos histórico-turísticos do município. Vale lembrar que a Grota de Angico é uma área tombada como patrimônio histórico-cultural pela Constituição Estadual de 5 de outubro de 1989, no seu artigo 229. Ainda segundo Raimundo Cavalcanti, “esse espaço é muito importante, porque, além de servir de atrativo turístico pra o município de Poço Redondo, é também um testemunho de um pedaço da história do Nordeste e que tem uma dimensão muito importante da vida da população local”.

Neste mesmo ano instituiu-se, ao lado do I Seminário sobre a História do Cangaço, com debates e exposições, a celebração da Missa para Lampião na Grota de Angico no dia 28 de julho, na data e local onde Lampião morreu. Com a presença de familiares de Lampião, ex-cangaceiros sobreviventes, ex-volantes e ex-coiteiros, a missa teve uma clara tônica política, diante das palavras do padre Eraldo Cordeiro: “Os covardes não ficam na história. Aqui, em Angico, terminou um movimento social que abalou o país por muitos anos. O Cangaço não existia (sic), se houvesse justiça no país e agora, neste lugar onde Lampião foi morto há 60 anos, vamos pedir a Deus, que ilumine os homens poderosos do Brasil de hoje, para haver bom senso nas decisões políticas, pois em cada nordestino, pulsa um Virgulino sentindo falta de luz”. Ainda segundo o padre, o “Nordeste continua sofrido, discriminado, esperando dias melhores, tal qual nos tempos do Cangaço”10.

Emerge aqui uma memória anti-volante, através de um discurso legitimador do cangaço, com base no conceito de “escudo ético”, tal como proposto por Frederico

Pernambucano de Melo, na medida em que os cangaceiros enfrentavam a injustiça social dos tempos do coronelismo e buscavam vingar alguma afronta a sua honra. Ao caracterizálo como movimento social, o padre se aproxima da leitura marxista do cangaço, cuja matriz está presente nas obras de Rui Facó e Eric Hobsbawn. Segundo seu discurso, a atualidade da rebeldia do cangaço é reforçada pela permanência das precárias condições sociais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As disputas da memória do cangaço devem ser inseridas na perspectiva de que as pessoas, grupos e povos procuram reinventar referenciais esquecidos ou silenciados. Há, assim, uma politização da memória, fazendo com a presença de múltiplas memórias subterrâneas obriguem aos poderes a negociarem sua legitimidade.

Neste sentido, diversos grupos sociais atuantes no sertão do Nordeste brasileiro buscam construir sua leitura sobre o fenômeno, de um lado, a partir de um viés social, de clara influência do marxismo e do pensamento de esquerda no Brasil, tentando demonstrar sua atualidade no contexto das lutas sociais na contemporaneidade e, de outro, através
daquilo que a profª. Luitgarde Barros chamou de uma “memória volante” e anti-cangaceira, presente nos livros e depoimentos das antigas volantes e de seus descendentes, da qual a autora claramente simpatiza.

Como alerta-nos M. Wiesebron, as memórias publicadas a partir dos anos 70 por pessoas ligadas diretamente ao cangaço – ex-cangaceiros, ex-volantes, ex-militares – ou seus descendentes devem ser lidas com bastante cuidado, pois, em grande parte, percebe-se evidente influência dos debates historiográficos produzidos em torno do tema, principalmente da obra de Eric Hobsbawn, como é o caso de Sila.

Aqui a questão da identidade emerge como um dos fundamentos da luta política e ideológica no sertão, na medida em que os grupos sociais reivindicam incessantemente seus espaços e a identidade nacional já não dá conta da multiplicidade de memórias subterrâneas, que trazem para a historiografia as lembranças dos excluídos.

Portanto, procuramos demonstrar que o cangaço não se tornou história, é ainda memória, campo de luta pelo presente e ferida aberta nas lutas políticas do Nordeste brasileiro, como se evidenciou no caso da luta política em torno da Praça Lampião, em Poço Redondo.

Antonio Fernando Departamento de História/Universidade Federal de Sergipe; Doutor em História Cultural pela Universidade de Brasília; coordenador do Grupo de Pesquisa História Popular do Nordeste (UFS/CNPq).

Foto: Fonte Google

Fonte: facebook
Página: Voltaseca Volta

http://blogdomendesemendes.blogspot.com


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