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sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Quintais - (Crônica)

Por: Rangel Alves da Costa(*)
Rangel Alves da Costa

QUINTAIS

Já tive quintais, já senti o prazer de abrir a porta dos fundos e encontrar mato e bicho bem ali pertinho. Hoje não, pois os autênticos quintais, aqueles de fogo de chão e varais de revoadas, só restam nas cidadezinhas interioranas e dolorosamente tenho de me contentar com a área dos fundos, murada, cimentada, sem uma planta sequer.

Por aqui - na cidade que nem adormece tranquila e sossegada e nem deixa ninguém sonhar com o berço interiorano de nascimento -, é preciso tornar o quintal uma parte da própria casa, com a máxima proteção, de muro alto e sem nada que possa lembrar as áreas descampadas que faziam extensão da porta dos fundos. Porta que muitas vezes ficava aberta para facilitar o encantamento com a lua lá em cima.


Aqui é tudo diferente, tudo frio, feio, desumano, cimento e cinza e demais. Pelo muro não se avista o vizinho, não há passagem para lugar algum, não há cancela que se abra adiante e leve às veredas dos espinhos e dos passarinhos. Há, talvez, uma planta de plástico, um cercado de ferro, um piso tão duro que a semente jogada esturrica por cima. E nada mais do que a saudade e a tristeza no olhar.

Os quintais, esses terrenos de terra nua nos fundos das casas, possuem uma utilidade ao mesmo tempo sentimental e histórico-geográfica. Sentimental porque muito do preservado ali remonta a um tempo mais distante, do afazer cotidiano da família; histórico-geográfico porque sua manutenção diz muito das transformações ocorridas ao redor, além de ser ambiente geralmente interligado ao mundo lá fora.

 Nos quintais são jogadas casualmente as sementes que vão brotando ao léu; são plantadas pequenas hortas ou árvores frutíferas; locais por onde cisca a galinha, passeia o galo velho; ali está colocado o velho pilão de bater café, herança da escravidão; onde o tanque de cimento espera a roupa pra ser lavada e os varais se estendem de canto a outro. Ali há também uma cobertura pra não deixar molhar o fogo de lenha.

Nos quintais existem mangueiras, goiabeiras, mamoeiros, e trepadas nelas as gaiolas dos passarinhos que o menino insiste em criar. Num canto, cuidadosamente cercada por pedaços de ripas está a farmácia do sertanejo, a botica matuta contendo a hortelã, os mastruço, a erva cidreira, o boldo, e todo tipo de plantinha que, na infusão ou no maceramento, faz mais efeito do que a medicação do doutor.

Lá por detrás, quase na embocadura do mataria, o garoto faz um cercadinho, limpa ao redor, coloca algumas pontas de vaca e diz que é fazendeiro, um rico sertanejo em meio ao seu imenso rebanho. Brinca o tempo todo ali, mas com muito cuidado, pois quintal também lugar de passeio e até moradia de serpente venenosa, de aranha de queimação e de piolho de cobra. Por isso mesmo o pai vive gritando pra ter cuidado com tudo ao redor.

Como que pregado ao chão, vez que sempre ali debaixo do sol e da chuva, todo quintal que se preze possui um tronco de madeira deitado no chão ou mesmo um banquinho esperando que alguém chegue para o seu instante de nada fazer. Então por ali chega o dono da casa de cigarro de palha no canto da boca e começa a olhar pelos cantos, a dona da casa de pano enrolado na cabeça e uma vasilha para pinicar quiabo, a velha solitária para conversar sozinha.

Nos quintais escurecidos, aqueles cujos arvoredos formam muralhas que escondem mistérios e outras realidades, pessoas se encontram, namorados saciam suas sedes, pequenos ilícitos são praticados costumeiramente. A galinha gorda some do galinheiro, levam uma ponta de vaca da fazenda do menino, pé ante pé afanam a planta medicinal.


E logo cedinho, ainda de madrugada, sobem na goiabeira para fazer a festança no que é dos outros. Se fosse só isso, mas some mamão e também sapoti. Mas não adianta, o traquina do molecote da rua debaixo parece que não tem outra coisa para comer na manhã. E balançando a cabeça como a dizer que não tem jeito mesmo, vai a dona de casa de cesto na mão colher a fruta que restou, um punhado de folhas para fazer um chá, os ovos da galinhada.

E é nesse momento que percebe o sumiço da galinha gorda. E um grito raivoso invade a manhã, pula as cercas, alcança os outros quintais. E assim vai a vida pela porta dos fundos, pelos maravilhosos quintais.
  
(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE. 

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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