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terça-feira, 15 de janeiro de 2013

O GADO COMENDO O OSSO DO BARRO E O HOMEM COMENDO O OSSO DO GADO (Crônica)

Por: Rangel Alves da Costa(*)
Rangel Alves da Costa

O GADO COMENDO O OSSO DO BARRO E O HOMEM COMENDO O OSSO DO GADO 

Mentira não. Tudo verdade. Os mais velhos afirmam com convicção e lágrima querendo vingar no canto do olho sem brilho: é a maior seca que assola o sertão nos últimos cinquenta anos.

Não é lorota não. Tudo verdade. E de doer nos olhos e nos sentimentos. Desde três anos ou mais que a estiagem desceu num raio de sol e resolveu fincar moradia. E de tanto reconhecer o lugar que é tão seu, parece não querer mais arribar de volta.

Tanque, açude, barragem, riacho, cacimba, olho d’água, tudo vazio, sem uma gota sequer pra matar a sede do homem e do animal. O que estava lamacento virou barro de vez; o barro petrificou. Daí os barreiros parecendo crateras cheias de lanhos profundos.


A mataria - que já era rala devido ao desmatamento desenfreado - foi secando, curvando, morrendo. A catingueira desnuda tenta resistir às dores, aroeira e umburana esmorecem, planta rasteira vira graveto.

O mandacaru, de braços eternamente abertos implorando clemência divina, nem parece mais com a planta sempre verdejante de outros tempos. Está magro, ossudo, cinzento, feio, quase não resistindo. Apenas aqueles espinhos feitos punhais dos vencidos.

Sertão adentro, já desde muito tempo que não se fala mais em bicho de caça. Agora então, que não se encontra mais qualquer pegada por cima da terra seca. O preá, que deveria existir sempre que o sertão continuasse existindo, até ele se tornou difícil encontrar. Caçar o que, comer o que?

Neste terrível cenário de dor e sofrimento, em meio aos gravetos, pedras e espinhos espalhados no chão, o calango reina praticamente sozinho. Mas agora mais assustado, mais amedrontado, parecendo não acreditar naquela devastação. E sai saltitando, correndo apressado em busca de qualquer loca para fugir do braseiro na terra.

Gado pastando é coisa rara de se ver. Tudo esquelético, tropeçando no peso da própria ossada, caindo. Cachorro magro, dois palmos de língua pra fora. Uma sede danada, um calor de torrar pedra. Urubus voejando contentes por todo lugar. Tristeza danada, seu moço!


Não há pasto e o gadinho que resta se deita pelos cantos sem forças nem para ruminar. A lágrima escorre do olho fundo, o mosqueiro zanzando ao redor. Na pele ossuda apenas o resto do resto. Mais adiante se espalham as carcaças, as cabeças ocas e ainda com pontas daqueles que deitaram para a morte.

Panela vazia e pote também; o menino vira a moringa e diz ao pai que tá com sede. O homem só falta endoidar sem ter muito o que fazer. Corre a catar no fundo da lata um resto de água suja. Depois de coada há de enganar a danada. Talvez o carro-pipa só passe amanhã, mas nunca para deixar mais que duas latas d’água.

Dali a pouco o mais novo e também mais buchudinho – acostumado a viver com a boca cheia do barro da parede – vai começar a chorar pedindo comida. Todo dia é esse sofrimento para dar de comer a meninada. Quando tem farinha, vai de farinha seca; quando tem pão, vai o pão seco mesmo; quando tem feijão com ovo então é uma festa. E quando não tem nada, como sempre acontece de nada ter?

Pedir a político não vai mais não. Já sabe bem como tudo acontece. Na hora de pedir voto leva cesta de comida e até água mineral, paga uma continha pequena e promete o mundo e o fundo, mas depois que ganha esquece de todo mundo. Na última vez que foi implorar uma carrada d’água simplesmente ouviu que rezasse pra trovoada cair.

O sol anda batendo tão forte pelas bandas do sertão que até miragem tem causado. Teve um cabra que jurou ter avistado um poço cristalino bem no meio do tempo. O coitado correu e deu um batim com roupa e tudo. Arranhou-se todinho na areia espinhenta e cheia de pedras. Outro se danou a tomar banho de chuva debaixo da fornalha do sol. Endoideceu.


E sentados na pedra grande, com feições queimadas dos dias quentes, dois velhos sertanejos proseavam sobre aquela situação. Foi quando um perguntou ao outro se lembrava do causo do gado comendo o osso do barro e o homem comendo o osso do gado. E outro, parecendo ainda mais entristecido, respondeu que sim. E ajuntou:

“Num é causo não cumpade, é o que nóis tamo passano. Tá tudo aí na frente dos óio, e agorinha mermo pá num deixá mentir. O gado comeno o qui incronta, seje barro de aguada ou fiapo de pau. E o homi comeno o gado que cai morto. Cuma o gado só tem osso, entonce o homi acaba roeno o osso do gado”.
  
(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE. 

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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