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terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Lampião: o Capitão do sertão! - Cap III

Por A. Fleming

Extraído do GEH - Grupo de Estudos Humanus


Meu pai e minha mãe querida
Quiseram me ensinar
No colo carinhoso
E ela ensinou-me a rezar
E a todos respeitar
E ele ensinou-me nos campos
E eu menino a trabalhar.


Lampião

Virgulino nasceu a quatro de junho de mil oitocentos e noventa e oito, de acordo com a certidão de batismo da Paróquia de Floresta do Navio, Livro 13, fls. 146, n. 436, ano de 1898.

Filho de José Ferreira da Silva e D. Maria Lopes, gente de bem, teve ele a sorte de ser amado e bem educado. Seus pais, em sua simplicidade sertaneja, intuitivamente souberam dar-lhe boa educação assim como a seus oito irmãos com base em princípios de união, coragem, religião e trabalho honrado, os quais eles já traziam latentes em si. Sua mãe sempre dizia: ?Não tenho filho para guardar no baú. Filho meu tem de enfrentar tudo como homem: o trabalho, o amor, a vida, a provação, a luta e até a morte!?

Nas linhas genealógicas de seus antepassados dos dois lados, paterno e materno, não se aponta um só criminoso, coisa muito rara nos sertões daquela época. Era neto da lendária Mulher Rendeira, D. Maria Jacosa Vieira Lopes, conhecida por D. Jacosa, mulher sertaneja, fiandeira de redes e cobertas de cama, que deu origem a este já citado épico da Música Popular Brasileira. A célebre toada acompanhou toda a trajetória de seu neto, o rei do cangaço, tornando-se um Hino de Guerra ? a Guerra de Lampião!

Virgulino, aos três meses de nascido, foi levado à pia batismal por seus avós maternos, batizado e consagrado à Nossa Senhora da Conceição. Padre Quincas, o vigário, encantado com os olhinhos da criança irrequieta, apertando-lhe carinhosamente as bochechas e sem intenção de ser profeta, disse:

- Sabem o que quer dizer o nome Virgulino? - perguntou ele.

- O nome, seu vigário, foi tirado do Lunário Perpétuo. - respondeu D. Jacosa, a madrinha.

- Virgulino ? explicou o padre ? vem de vírgula, quer dizer, pausa, parada. E arregalando os olhos: ?Quem sabe, o sertão inteiro e talvez o mundo vão parar de admiração por ele!?

Família de Lampião

Auroras douradas e arrebóis a se perder no mistério das lonjuras despertavam em Virgulino menino a vontade de desvendá-las até chegar à pancada do mar. As mutações do céu inquieto ao sopro cruzado dos alísios; a magia do luar branquejando os campos e destinturando a Serra Vermelha; o mato em flor com a fragrância dos marmeleiros, o riacho São Domingos soprando na força dos invernos e até mesmo a seca maravilhava Virgulino naquele sertão de contrastes: descompassada variação térmica entre o dia e a noite; o verde, exuberante do inverno, ressuscitado magicamente das caatingas sofridas e peladas da seca; violentas alvoradas afogueadas; madrugadas cheirosas, frescas e sonoras; e o luar, sim,

- Não há, ó gente, ó não,
luar como este do sertão!... [2]

Virgulino veio à luz nessa paisagem e nela viveu, lutou, amou e morreu.

Todos esses elementos naturais depositavam, em seu espírito infantil sensivelmente receptivo, as sementes do belo, da arte e da perfeição, criando e apurando, com o tempo, sua vocação romântica, manifestada em poesias e composições de sua lavra, na fidelidade de seus amores ardentes e na instituição de um cangaceirismo de menestréis do canto e da alegria.

Brincava nos cerrados caçando de bodoque ou armando quixós, montando carneiro valente. Nos areais, corria a lacoxia, virava bundacanasca, dava cambalhota, empinava papagaio, soltava pião. Nas águas do riacho pescava, nadava e, com requinte, dava saltos de mergulho. O banho, aliás, era um hábito que lhe satisfazia a preocupação, e que conservou por toda a vida, tendo sempre cultivado verdadeiro gosto por andar asseado, impecavelmente limpo.[3]

O que, porém, mais o empolgava era brincar de cangaceiro, inspirado pelas histórias reais, muito em voga, desses homens valentes. Quando algum desses - misto de bandido com herói - aparecia, Virgulino corria para ver e perguntar a razão de sua vida. Invariavelmente vinha a resposta: -?Injustiça!? e, à medida que o tempo passava, esta palavra sempre ouvida ? INJUSTIÇA ? ia se gravando no seu espírito até ser compreendida, mais precisamente quando ela o atingiu e feriu por meio de abomináveis perseguições.

Enfim, era assim Virgulino um menino diferente que nasceu para comandar! Inteligência superior, excepcional, até hoje por todos proclamada no sertão. Inclusive, inteligência, honestidade e o epíteto de Homem de palavra são as três notas características unanimemente reconhecidas por todas as pessoas, até mesmo inimigos de Lampião, e que julgam desapaixonadamente a sua figura lendária.

Quando me lembro meus senhores,
Do meu tempo de inocente,
Que brincava nos cerrados
Do meu sertão sorridente
Sinto que meu coração
Magoado desta paixão
Bate e chora amargamente.

As influências educativas continuaram a se manifestar em Virgulino através dos anos de sua juventude. Tornava-se cada vez mais evidente seu aguçado espírito criativo associado a uma habilidade de tudo fazer com distinção e perfeição. Sentia ele o fascínio pelos heróis. Leu em edição popular as histórias muito divulgadas de Carlos Magno e os Doze Pares da França e de Napoleão Bonaparte, tendo sido relidas várias vezes com grande entusiasmo.

Nenhuma cabrocha sertaneja escapulia aos olhares acariciantes, irresistíveis e dominadores de Virgulino Ferreira da Silva. Tipo belo e másculo, alto de 1,75m, moreno-claro, cabelo bom, preto e fino, estirado, bem penteado e untado de brilhantina. De falas macias e francas. Metido com esmero no seu dorma (roupa masculina domingueira ou de festa) de mescla ou de brim claro listrado, bem passado, calças de vinco, atraindo, assim, a simpatia de todos e o fascínio feminino.


Esse cuidado no vestir ele o teve em todas as fases de sua vida. Era Virgulino o primeiro vaqueiro em Pajeú em elegância dentro do figurino sertanejo. E celebrizou-se também como o primeiro vaqueiro em Pajeú a fazer coisas inauditas e inimitáveis desde os quatorze anos de idade, como, por exemplo, pegar um boi no escuro!

Era exímio artesão em artefatos de couro, os quais com perfeição de acabamento fabricava: vestia-se de vaqueiro, com gibão, colete, perneira, joelheira, guarda-pé, luvas, alforje, bornal, bruaca, selas e arreios, chibatas, relho completo com buranhém e ponteira de estalo, cartucheiras, bainhas para faca e pistola...

Grande animador de festas, quadrilhas, cocos; cantador de valsas, modinhas, emboladas, versos de folhetos. Músico tocador de sanfona, violão, viola, vialejo (realejo de boca), pandeiro, ganzá. Poeta popular, repentista e romântico; compositor musical, tanto de letra como de música; criador e divulgador do xaxado... Dançador, aclamado Pé-de-Ouro... Seleiro, curreiro, agricultor, criador, vaqueiro de fama, domador de cavalos e burros brabos...Almocreve, comerciante, ferreiro. Enfermeiro, parteiro, guerrilheiro estrategista ímpar dentre os maiores do mundo em todos os tempos! (Negue quem puder!) Resumindo: um ser humano singular na multiplicidade de seus predicados.


Cresci na casa paterna
Quis ser homem de bem
Viver de meus trabalhos
Sem ser pesado a ninguém
Fui almocreve na estrada
Fui até bom camarada
E tive amigos também.

Por essas e outras, entre os seus dezessete e dezoito anos de idade, tivera o primeiro filho. Doravante e no cangaço até sua união com Maria Bonita, a quem jurou fidelidade no amor, semeou descendências que se supõe numerosa.

Como se vê, evidentes e vivas as suas tendências ingênitas de liderança, de comando, de genialidade: decisões claras e seguras, vontade forte, precoce condutor. Um líder nato que as modelações do tempo e dos acontecimentos haveriam de retocar e aperfeiçoar dentro de uma personalidade múltipla, de ação imprevisível, complexa e carismática, colocando-o na galeria dos maiores líderes e elegendo-o rei ? o Rei do Cangaço!

Notas

[1]. Lunário Perpétuo, Valenciano Jerônimo Cortez ? Almanaque-calendário de folcomunicação, muito em voga
no sertão desde o século XVIII, baseado na astrologia, com prognosticação dos acontecimentos,
?equação? do tempo, preceituário agrícola e veterinário, receituário de drogas estupefacientes, rudimentos
de física, uma infinidade de indicações úteis tiradas da sabedoria popular da época.

[2]. Catulo da Paixão Cearense.

[3]. 1) Quixó ? Arapuca, armadilha formada por uma laje inclinada e sustentada por um pauzinho para
pegar preá, mocó...
2) Enxu ? casa de abelha
3) Lacoxia ? os meninos se colocam em círculo olhando para dentro; rodeando pelas costas corre
chamando ?lacoxia? com a peia na mão e dizendo: ?Corre, corre, corre, lacoxia, que é de noite,
que é de dia?; deixa a peia no chão por trás dos pés de algum da roda, o qual deverá estar atento,
pegar a peia e sair correndo na mesma direção atrás do outro até ele tomar o lugar que fora
desocupado; se esse for alcançado antes de chegar, leva peia daquele; e assim sucessivamente.
4) Bundacanasca ? Apoiar a cabeça no chão e virar o corpo em seguida pelas costas.

 

Extraído do Anuário Cultural Humanus VII - Edição Lampião



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Um comentário:

  1. Anônimo18:18:00

    Caro Mendes: Este é mais um amplo e importante texto, dividido em capítulos, sobre a vida do menino Virgolino - mais tarde, Lampião - o rei do cangaço. UM TEXTO ESCLARECEDOR, principalmente para os novos pesquisadores. Parabéns Mendes e A. Fleming.
    Antonio José de Oliveira - Serrinha-Ba.

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