Por Leandro Cardoso Fernandes
No primeiro
Cariri Cangaço, realizado em setembro de 2009, ante a iniciativa genial de
Manoel Severo, tivemos uma oportunidade ímpar de perfilar os maiores
pesquisadores e estudiosos do assunto, e pôr em debate ideias, controvérsias e
pontos obscuros desse palpitante tema. Reuniram-se, na região metropolitana do
Cariri, pessoas de todos os cantos do Brasil, e com as mais diversas afinidades
com o assunto: seja através do cordel, da música, do cinema, da pesquisa, da
mera curiosidade ou mesmo a partir de ancestrais ligados às lutas sertanejas,
como foi o caso de Paulo Britto, filho de João Bezerra, Neli, filha de Moreno e
Durvalina, além do neto de Antonio da Piçarra, o excelente historiador
Vilsinho.
Numa das vezes
que privei da companhia de Moreno, em sua casa em Belo Horizonte, tive a
oportunidade ímpar de uma verdadeira “aula particular” sobre cangaço. Gostaria
de compartilhar, nesta oportunidade, uma dessas lições que tive desse homem,
que, bem longe de ser um coadjuvante, teve participação importante em vários
episódios da historiografia do cangaço, como, por exemplo, a invasão de
Piranhas.
Dona Durvinha
havia me dito que fora picada por uma Jararaca, e que Seu Moreno é quem a havia
curado, através de cuidados improvisados no meio do mato. Eu, como médico,
fique muito curioso para saber o que o cangaceiro havia feito, naqueles ermos,
para impedir que o veneno letal ceifasse a vida da companheira. Então
perguntei:
- Seu Moreno,
é verdade que Dona Durvinha foi mordida por uma Jararaca?
- É sim,
senhor! – Ele respondeu – Ela andou perto de morrer!
- Mas será se
era mesmo uma Jararaca, seu Moreno, prá ela ter escapado? – Perguntei,
provocando o velho cangaceiro.
Ele me olhou bem nos olhos e falou numa seriedade que me deixou desconcertado.
- Doutor
Leandro, o senhor acha que eu não conheço uma Jararaca?
Apressei-me em desfazer a situação:
Apressei-me em desfazer a situação:
- Que é isso,
seu Moreno? Eu sei que o senhor conhece muito bem. Mas diga-me: o que foi que
ela sentiu?
- Ficou
desmaiando, botou sangue pela venta, pelos ouvidos pelo local da mordida... –
Ele disse.
Nesse momento, tive certeza tratar-se de mordida de Jararaca. Uma das propriedades do veneno botrópico é provocar distúrbios da coagulação sanguínea.
- E o que foi
que o senhor fez? – Perguntei entusiasmado.
- Tinha
chovido. A terra tava fria. Cavei um buraco no chão e enfiei a perna dela
dentro e deixei lá.
- Mas para quê
isso, Seu Moreno?
- Meu filho, a
terra chupa o veneno. Você não sabia? Ela foi melhorando, melhorando e acabou
ficando boa. Depois, na Bahia, paguei uma promessa em Bom Jesus da Lapa, que
tinha feito, se ela escapasse.
Fiquei
pensando naquela explicação, até perceber nitidamente o bom senso e a sabedoria
de Moreno. Mesmo considerando a enorme probabilidade de a cobra ter mordido
algum bicho ou um sapo antes de ter atacado Durvinha (e, dessa forma, ter-lhe
inoculado pouco veneno), a terra molhada e fria faz com que haja constricção
dos vasos no local da picada, diminuindo a absorção da peçonha. E quanto mais
se cava, mais fria é a terra, diminuindo a circulação sanguínea e absorção.
Isso dá a impressão ao cangaceiro de que é a terra que “chupa” o veneno.
Há – é bom que
se diga - controvérsias em relação a esse procedimento de restringir a
circulação local após picada de animal peçonhento, sob pena da piora local, como
necrose e graves sangramentos de extremidades. Mas o importante é que a aguçada
inteligência do homem de cangaço funcionou, e somente com base do que tinha a
sua disposição, salvou a vida da companheira. Esse rompante intuitivo acertado
é o que muitas vezes fazia a diferença entre a vida e a morte na guerra da
caatinga. O cangaceiro utilizava tudo aquilo que dispunha a seu redor com
bastante perspicácia, para a resolução dos mais variados problemas. Seja ou não
levado por superstições, o importante é que o resultado final obtido por Seu
Moreno foi satisfatório...
Graças ao
Cariri-Cangaço pudemos compartilhar estas e outras histórias, com o enorme
prazer da companhia de descendentes dos personagens que participaram destes
fatos intrigantes. Eles fizeram do Sertão nordestino o palco de nossa história
de lutas, que hoje é imensa riqueza artística e nossa verdadeira identidade
cultural.
Leandro
Cardoso Fernandes - Médico pesquisador e escritor do Cangaço Teresina / PI
Fonte:
Facebook
Página:
Lampiã, Cangaço e Nordeste
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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