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sábado, 1 de abril de 2017

UM TEXTO PARA ALARGAMENTO DA NOSSA COMPREENSÃO DO FENÔMENO CANGAÇO...

Material do acervo do pesquisador Antonio Corrêa Sobrinho

"No dia em que conheci um cangaceiro, em carne e osso, a minha imaginação não chegou à realidade. Havia muito mais no cangaço que me escapava. Sentia o poder dos homens fora da lei, mas não podia vê-lo na sua realidade."

Do Jornal "O ESTADO DE S. PAULO" - 22/11/1953 (pág. 65).

O ROMANCE E O DRAMA

Wilson Martins

As duas mais altas manifestações, até ao momento, desse novo indianismo são, publicados pela editora José Olympio, o romance do senhor José Lins do Rego – “Cangaceiros", e o drama da senhora Raquel de Queiroz – “Lampião”. Esta última, que já tinha impregnado os diálogos do filme de Lima Barreto da tonalidade literária que os caracterizou – e que não deixava de desafinar com a rudeza dos personagens e do ambiente –, vence agora a sua timidez (1) e publica um drama em cinco quadros, focalizando a figura lendária e mítica do cangaceiro por excelência, da encarnação mesma do cangaço. Já a ideia de fazê-lo herói de uma peça é necessariamente criação literária fundada sobre o diálogo, ou sobre o monólogo oral, duas coisas a que o sertanejo em geral, e o cangaceiro em particular, são decididamente infensos. O sertanejo é, como se sabe, um ser eminentemente taciturno. Obriga-lo a falar, a exprimir coerentemente as suas emoções, demonstrar que as possui, é, do ponto de vista psicológico, um contrassenso: a peça de teatro parece um gênero inconciliável com a natureza humana do cangaceiro. Tanto mais neste caso, em que a sua figura tradicional é substituída pela de um tipo mais ou menos imóvel, declamando as suas tradições e, no fundo, amante de Maria Bonita.

Assim, esse inocente membro da família dos Ferreira, que, segundo uma reportagem do senhor Luciano Carneiro, era um “jovem vaqueiro que só (sic) abraçaria o crime aos vinte anos”, aparece de repente como os índios de José de Alencar, valentes guerreiros, que venciam a rudeza presumível de suas almas e nos surpreendiam com admirável virtuosismo no manejo da língua e na gama das paixões. É curioso, por outro lado, um certo aburguesamento de Lampião, que, na peça da senhora Raquel de Queiroz, aproveita o recolhimento do lar – isto é, dos asilos em que sucessivamente se acoita – para conversar com Maria Bonita a respeito das coisas deste mundo, adotando o tom didático do bom chefe de família que explica aos seus: “Com a proteção de Meu Padrinho, tenho o corpo fechado para moléstia, para o chumbo e para o ferro, para praga e mau olhado. É como se tivesse uma capa de aço me protegendo”.

Tudo isso não impede, naturalmente, que a peça da senhora Raquel de Queiroz obtenha o maior sucesso de representação, como já o obteve de crítica. É que, em geral, não se costuma olhar muito de perto para os mitos e é mesmo aconselhável não o fazer. A idealização do índio, realizada por Gonçalves Dias e José de Alencar na literatura, e por Carlos Gomes na música, resistiu a falsidade psicológica que em todos esses casos é evidente. O fenômeno é dos mais interessantes e se explicaria, ainda, como manifestação romântica das mais típicas: o que o leitor, o espectador, deseja e ama é a sublimação, é “imaginar” o herói envolto em uma atmosfera própria, e que em geral nada tem com os seus caracteres pessoais. Mas talvez interesse aos estudiosos de sociologia essa nova manifestação romântica, que acrescenta um momento inesperado à evolução do romantismo no Brasil: é que à apologia do índio e à apologia do negro – como tipos puros, racial e simbolicamente – acrescenta-se agora a apologia do mestiço, provavelmente mais índio que negro, mas, em todo caso, substituindo o exotismo físico pelo exotismo de status, e obscuro vingador de todas as nossas carências.

O que prova que com esse novo indianismo trata-se de fenômeno coletivo e não individual o fato de o cangaceiro ter exatamente os mesmos caracteres na fita, na peça da senhora Raquel de Queiroz e no romance do senhor José Lins do Rego. Em todas essas criações, o sertanejo – também idealizado – de Euclides da Cunha, deixa de ser “desgracioso, desengonçado, torto”, abandona o “andar sem firmeza, sem aprumo, quase gigante e sinuoso”, e a “postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente”, deixa de ser o “homem permanentemente fatigado” e de “palavra remorada”, para se transformar no homem transfigurado que o próprio Euclides também observa (?), desde que aparecesse “qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias dormidas”. Mas, onde Euclides via momentos excepcionais, os nossos atuais intérpretes veem a normalidade: o cangaceiro é o belo sertanejo, de postura normalmente ereta, de olhar altaneiro e coragem indomável, e, sobretudo, decerto, lírico e sentimental.

Se, numa peça de teatro, não havia outra solução senão a do diálogo – qualquer que fosse a falsidade psicológica resultante – num romance essa fatalidade não se impunha. Ora, é exatamente o que acontece no último livro do senhor José Lins do Rego: creio poder afirmar que em nenhum dos seus livros anteriores os personagens falam tanto como esses cangaceiros. Falam em lugar de agir, que é exatamente o contrário do que o leitor esperaria deles: é um romance imóvel, em que os personagens remoem continuamente os mesmos projetos sem realizá-los, a não ser, evidentemente, quando o romance deve terminar – e ainda assim. Psicologicamente, eles se assemelham mais ao atônico Carlos de Melo, do “Ciclo da Cana-de-açúcar”, do que à figura do cangaceiro, tal como o mito literário deveria interpretá-lo, desde que a comparação com o cangaceiro real não teria razão de se colocar.

O romancista, entretanto, quis fazer dos seus cangaceiros – ao mesmo tempo que tipos confessadamente imaginados – encarnações ao senhor João Condé: “Este livro representa tudo que a minha imaginação conseguiu fixar sobre a vida dos cangaceiros. Como menino de engenho o cangaceiro sempre existiu para mim como uma força de lenda. No dia em que conheci um cangaceiro, em carne e osso, a minha imaginação não chegou à realidade. Havia muito mais no cangaço que me escapava. Sentia o poder dos homens fora da lei, mas não podia vê-lo na sua realidade. Este “Cangaceiros” é tudo o que o homem maduro chegou a pôr de pé com as lembranças da infância. O romance exprime a minha admiração pelo impossível. É uma narrativa que se ligou ao que em mim é o mais lírico e o mais duro. É um romance de homens de força e de homens de alma. Espero que seja lido mais do que (2) um depoimento; e que seja a trágica condição das criaturas que superam as dores da vida”.

Quando se publicou esse interessante documento, numa revista carioca, o presente estudo já se encontrava praticamente concluído e, em particular, completamente fixada a sua ideia central. Ele veio, assim, confirma-la pelo testemunho acima de todos valioso do próprio romancista, que indica a gênese inconscientemente romântica do seu trabalho. O seu romance exprime a admiração pelo impossível, a transfiguração do tipo real em mito literário. De resto, todo esse número de revista é uma espécie de documentário sore o novo indianismo: além dessas confissões do romancista, há a reportagem já citada sobre o jovem vaqueiro que entra para o cangaço a fim de vingar (naturalmente) afrontas injustificadas fitas à sua família, e outra reportagem, ainda, sobre o outro “herói” que o Brasil aclama neste momento, um deputado federal que se deixa fotografar ao lado de uma metralhadora portátil, que não abandona, segundo nos informam, nem nas horas das refeições. O que é, como se sabe, demonstração da mais evidente coragem.

O Brasil manifesta, assim, a sua sede de heróis; mesmo que os seus heróis não sejam dos mais impolutos. Ao ideal antigo, que identificava o heroísmo na “fortitudo et sapientes”, que venerava o cavalheiro sem mancha e sem reproche, o brasileiro de 1953 substituiu o herói brutal, o “poder dos homens fora da lei” como diz o romancista, e identifica o seu herói não como a coragem e a pureza, mas com vitória, qualquer que ela seja. É um espetáculo cuja gravidade ultrapassa, provavelmente, os domínios da simples literatura – (ESI).
Curitiba, novembro de 1953.

Notas: 1. Cf. “Lampião”, crônica publicada no "O Cruzeiro", de 18.7.53; e 2. Textual, mas deve ser erro de imprensa. O sentido exige: “mais do que como um depoimento”.

Imagem ilustrativa da matéria

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