Por Rangel Alves
da Costa
Quem não se
recorda daquela cena de abertura da minissérie “Lampião e Maria Bonita”, quando
o Lampião protagonizado pelo ator Nelson Xavier aparece à frente de parte de
seu bando e num instante, como se estivesse percebendo algo estranho nos
arredores, primeiro levanta a mão direita e depois a esquerda, em sinal de
alerta? Ao som de um refrão da maravilhosa “Mulher nova, bonita e carinhosa,
faz o homem gemer sem sentir dor”, na voz plangente de Amelinha, a minissérie
produzida pela Rede Globo de Televisão em 1982, passava a contar, embora de
modo fictício, a história do mais famoso casal nordestino, senão do próprio
cangaço.
Interessa notar, contudo, que desde esta cena de abertura já se percebia a força interpretativa do grande ator que foi Nelson Xavier. Ninguém jamais interpretou Lampião, o líder cangaceiro dos carrascais nordestinos, como o ator paulista nascido em 1941 e falecido recentemente, em 10 de maio. O que se tem a partir daí e ao longo de toda a trama é um ator vestido e revestido de corpo e alma num personagem. Não há caricatura, não há trejeitos forçados, não há mera imitação. O que há, na verdade, é a concepção mais original possível daquilo que de uma forma existiu. E Nelson Xavier traduz com máxima expressividade esse autêntico nordestino, com seus mistérios e segredos, sua tenacidade e carisma.
https://www.youtube.com/watch?v=WBZmRkaE89U
A minissérie da Rede Globo, escrita por Aguinaldo Silva e Doc Comparato, com direção de Paulo Afonso Grisoli e Luiz Antonio Piá, alcançou retumbante sucesso não pela história contada, descontextualizada que foi dos fatos reais. O pano de fundo é o cangaço, mas com trama fictícia. O que permitiu seu reconhecimento e aplausos foi justamente a beleza das interpretações conduzidas por Nelson Xavier como Lampião e Tânia Alves como Maria Bonita. Ao lado dos cenários nordestinos, da riqueza de detalhes que despertavam interesse maior pela saga, bem como da encarnação dos atores refletindo com exatidão os seus personagens, o resultado não poderia ter sido melhor.
Ora, impossível agora traduzir todo o gestual de Virgulino Ferreira da Silva, o seu modo exato de andar, de falar, de comandar e conviver com o seu bando e demais pessoas alheias à sua saga, porém não menos envolvidas. Sabe-se, porém, e através de relatos, que Lampião era místico, “cabreiro”, metódico, de palavras comedidas e ordens veementes. Mas pouco mais que isso se conhece do líder estrategista das caatingas nordestinas. Como chefe de bando, certamente impunha a seu modo a condução de sua luta. Já o homem em si, o Lampião de nome e sobrenome, na sua intimidade e como ser preocupado com o seu destino, ainda não foi totalmente decifrado. Contudo, Nelson Xavier expôs esse retrato com maestria.
E assim por que o Lampião encarnado por Nelson Xavier é verdadeiramente aquele que se mentaliza ou se imagina sobre o rei cangaceiro. Aquelas mãos entrecruzadas, cheias de anéis dourados, são as mãos de Lampião. Aquela figura cheia de cartucheiras, embornais, lenço ao pescoço, chapéu estrelado, armas e outros adornos, não pode ser outro senão Lampião. Aquele olho mais baixo atrás de óculos arredondados, cego, que nunca se abre totalmente em qualquer cena, é o olho de Lampião. Aquele rosto nordestino, moreno, queimado de sol, só pode ser o semblante de Lampião. Aquele gestual, aquela fala, aquele jeito de andar, só pode ser mesmo de Lampião. Sim, é Lampião, mas é Nelson Xavier.
O papel desempenhado pelo ator paulista foi algo incontestável em termos de dar contornos de revivência ao emblemático personagem. No gestual, na força interpretativa, no semblante e no olhar de olho cego, bem como nas demais expressões requeridas, em todos estes aspectos Nelson Xavier se fez imenso, enorme, essencial, como se nenhum outro ator pudesse captar e transpor com tamanha originalidade os passos, as lutas e os cotidianos do rei do cangaço. Por isso mesmo que nunca é demais afirmar que quem nunca conheceu Lampião pode encontrar a maior proximidade possível no personagem vivido por Nelson Xavier. O ator sempre dizia que o seu melhor papel havia sido o de Chico Xavier. Mas todo mundo o relembra sempre como Lampião.
E relembra também aquela abertura da saga cangaceira com os versos de Otacílio Batista e Zé Ramalho: “Virgulino Ferreira, o Lampião, bandoleiro das selvas nordestinas, sem temer a perigo nem ruínas, foi o rei do cangaço no sertão. Mas um dia sentiu no coração o feitiço atrativo do amor, a mulata da terra do condor dominava uma fera perigosa. Mulher nova, bonita e carinhosa, faz o homem gemer sem sentir dor”.
“Santinha, hoje vamo arribar daqui...”. Dizia Nelson Xavier na trama. Mas eu tinha certeza que ouvia do próprio Lampião.
Escritor
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Fonte: facebook
Página: Rangel Alves da Costa
Grupo: Historiografia do Cangaço
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