(José de Paiva
Rebouças/Domingo/Jornal de Fato)
Dizem que o
vestido de fim de ano de uma secretária estadual custou 15 mil reais. O de
Ivete Sangalo, 70 mil.
Apesar da
condição pessoal de qualquer pessoa e do direito capitalista de comprar o que
quiser com seu dinheiro e trabalho, não será exagero gastar o montante de um
carro numa roupa para usá-la uma única vez?
Esse
comportamento é bastante comum entre artistas que precisam ostentar para se
manterem na grande mídia. É comum uma atriz de cinema aparecer com roupas e
joias emprestadas, o que é mais aceitável. Troca de mídia: ela aparece bem e
divulga a empresa.
O problema é
ver esse comportamento influenciando gente mais simples. Garotas muitas vezes
sem condições se prostituindo ou endividadas para comprar uma roupa sem poder
pagar. Deixam de viajar, comer melhor, adquirir aquilo realmente necessário,
para ostentar um luxo dispensável.
Brinca um
amigo dizendo da existência de uma faculdade que só forma líderes. Ele comenta
não entender uma sociedade onde só existam líderes. “Quem dará preferência no
trânsito ou na calçada? A possibilidade de uma guerra nuclear é bem grande com
isso”, fala rindo da própria desgraça alheia.
Somos, por
natureza, levados a sentir-nos mais fortes. Está em nossa genética a urgência
de sermos mais poderosos, pois isso assegura a nossa sobrevivência no mundo da
seleção natural. Precisamos vencer a microbiota, os animais peçonhentos, os
leões devoradores de humanos e os humanos devoradores de leões.
A questão é
quando nos tornamos nosso próprio inimigo, como se nossa consciência, atacada
por atividades externas, nos tornasse autocombatentes. Precisamos matar quem
somos e nos reconstruir para o outro. Por causa disso, meninas de 15 anos estão
acabando os cabelos com química, colando unhas postiças, usando roupas
inadequadas para a anatomia do seu corpo. Muitas vomitam a comida para não
ficarem diferentes da ideia de perfeição exposta nos outdoors, televisão e
redes sociais.
Soraya
Rodrigues de Aragão, psicóloga e psicotraumatologista, explica que com a
democratização do acesso à internet e redes sociais foram internalizados novos
aspectos comportamentais e agregados novos valores sociais. “Através destes
contextos, criamos muitas vezes uma realidade pré-fabricada a partir das nossas
carências afetivas e emocionais, sendo as redes sociais o grande termômetro da
insatisfação e insegurança das pessoas consigo mesmas. Mas... até que ponto
podemos nos satisfazer nos reinventando muitas vezes na irrealidade?”,
questiona ela.
A psicóloga e
professora Shirley Valera Rialto Sesarino defende que a carteirada pode indicar
problemas de insegurança e revelar uma necessidade de autoafirmação. O uso dos
recursos pessoais para ostentar é como uma carteirada, para mostrar à sociedade
o patamar em que está o sujeito, nestes casos, muitas vezes acima da esmagadora
maioria.
Mesmo tendo
seu próprio dinheiro, conquistado possivelmente às custas de muito estudo e
prestígio, estaria a secretária de estado esnobando a situação de seu povo?
Mais de 2 mil jovens assassinados neste ano, 30% na linha da pobreza, 27% de
desempregados, policiais, profissionais da saúde e professores em greve sem
salário há dois meses. Estes números não cabem em um vestido, muito menos em um
poema.
O que pensar
de Ivete habitante da Roma Negra, berço da pobreza escravocrata brasileira? Mas
o que tem a ver o dinheiro pessoal, aquilo conquistado com tanto esforço com a
pobreza alheia? Bem, aí se responde com outra pergunta: será que não tem a ver?
Não é estranho
que oito pessoas tenham mais dinheiro que a metade (3,6 bilhões) das pessoas de
todo o mundo? Pode ser que muitos sejam miseráveis por falta de ação e vontade,
mas pode também não ser. E, mesmo que seja, ainda sendo injusto ver uns
trabalhando e outros não, pior ainda é saber de tantos morrendo por não ter o
mínimo.
A indústria da
riqueza e da fama, também são arcabouços da pobreza e isso é uma realidade
crua. Ela escraviza, cria subempregos e trabalhos análogos à escravidão. A
prova são as inúmeras lojas de grife sendo pegas mantendo em regime cruel seus
trabalhadores, geralmente nordestinos ou bolivianos. Se aproveitam da fome, da
necessidade aterradora de dar comer aos filhos, de se manter vivos no mundo.
Almeida
Garrett, dramaturgo da coroa portuguesa do século 19, perguntava quantos pobres
são necessários para manter um rico. Não é preciso este cálculo, mas a resposta
sempre nos leva à mesma palavra: muitos.
Tudo isso para
quê? Para uma socialite gastar 15 mil em um vestido e usar uma única vez. Para
uma estrela dos palcos gastar 74 salários mínimos (o equivalente a seis anos de
um trabalhador assalariado no Brasil) para exibir um vestido com 10 mil
cristais, feitos, provavelmente, por quem ganha apenas 945 reais por mês.
Muito pior que
isso, para que jovens se prostituam, percam sua dignidade, se submetam à ilusão
das mídias sociais e se tornem tristes e infelizes. Para que nordestinos e
bolivianos sofram 18 horas por dia em porões insalubres para ganhar 60 centavos
de real por cada calça vendida a centenas de dólares nas vitrines das grandes
grifes.
Tudo isso,
para uma socialite se despir sozinha na claridade de seu closet e exibir no
espelho seu corpo cansado pelo tempo. Para esconder a tristeza nos olhos por
ter, em mais um dia, se esforçado no seu máximo para se mostrar melhor que os
outros. Para morrer de medo de um dia perceberem nela apenas um ser humano
comum, sem nada de diferente dos outros senão um vestido incômodo, pesado e
insuficientemente incapaz de reproduzir a felicidade de uma criança brincando
na lama.
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