Seguidores

domingo, 7 de janeiro de 2018

UM VESTIDO, QUE TRISTEZA.

(José de Paiva Rebouças/Domingo/Jornal de Fato)

Dizem que o vestido de fim de ano de uma secretária estadual custou 15 mil reais. O de Ivete Sangalo, 70 mil.


Apesar da condição pessoal de qualquer pessoa e do direito capitalista de comprar o que quiser com seu dinheiro e trabalho, não será exagero gastar o montante de um carro numa roupa para usá-la uma única vez?

Esse comportamento é bastante comum entre artistas que precisam ostentar para se manterem na grande mídia. É comum uma atriz de cinema aparecer com roupas e joias emprestadas, o que é mais aceitável. Troca de mídia: ela aparece bem e divulga a empresa.

O problema é ver esse comportamento influenciando gente mais simples. Garotas muitas vezes sem condições se prostituindo ou endividadas para comprar uma roupa sem poder pagar. Deixam de viajar, comer melhor, adquirir aquilo realmente necessário, para ostentar um luxo dispensável.

Brinca um amigo dizendo da existência de uma faculdade que só forma líderes. Ele comenta não entender uma sociedade onde só existam líderes. “Quem dará preferência no trânsito ou na calçada? A possibilidade de uma guerra nuclear é bem grande com isso”, fala rindo da própria desgraça alheia.

Somos, por natureza, levados a sentir-nos mais fortes. Está em nossa genética a urgência de sermos mais poderosos, pois isso assegura a nossa sobrevivência no mundo da seleção natural. Precisamos vencer a microbiota, os animais peçonhentos, os leões devoradores de humanos e os humanos devoradores de leões.

A questão é quando nos tornamos nosso próprio inimigo, como se nossa consciência, atacada por atividades externas, nos tornasse autocombatentes. Precisamos matar quem somos e nos reconstruir para o outro. Por causa disso, meninas de 15 anos estão acabando os cabelos com química, colando unhas postiças, usando roupas inadequadas para a anatomia do seu corpo. Muitas vomitam a comida para não ficarem diferentes da ideia de perfeição exposta nos outdoors, televisão e redes sociais.

Soraya Rodrigues de Aragão, psicóloga e psicotraumatologista, explica que com a democratização do acesso à internet e redes sociais foram internalizados novos aspectos comportamentais e agregados novos valores sociais. “Através destes contextos, criamos muitas vezes uma realidade pré-fabricada a partir das nossas carências afetivas e emocionais, sendo as redes sociais o grande termômetro da insatisfação e insegurança das pessoas consigo mesmas. Mas... até que ponto podemos nos satisfazer nos reinventando muitas vezes na irrealidade?”, questiona ela.

A psicóloga e professora Shirley Valera Rialto Sesarino defende que a carteirada pode indicar problemas de insegurança e revelar uma necessidade de autoafirmação. O uso dos recursos pessoais para ostentar é como uma carteirada, para mostrar à sociedade o patamar em que está o sujeito, nestes casos, muitas vezes acima da esmagadora maioria.

Mesmo tendo seu próprio dinheiro, conquistado possivelmente às custas de muito estudo e prestígio, estaria a secretária de estado esnobando a situação de seu povo? Mais de 2 mil jovens assassinados neste ano, 30% na linha da pobreza, 27% de desempregados, policiais, profissionais da saúde e professores em greve sem salário há dois meses. Estes números não cabem em um vestido, muito menos em um poema.

O que pensar de Ivete habitante da Roma Negra, berço da pobreza escravocrata brasileira? Mas o que tem a ver o dinheiro pessoal, aquilo conquistado com tanto esforço com a pobreza alheia? Bem, aí se responde com outra pergunta: será que não tem a ver?

Não é estranho que oito pessoas tenham mais dinheiro que a metade (3,6 bilhões) das pessoas de todo o mundo? Pode ser que muitos sejam miseráveis por falta de ação e vontade, mas pode também não ser. E, mesmo que seja, ainda sendo injusto ver uns trabalhando e outros não, pior ainda é saber de tantos morrendo por não ter o mínimo.

A indústria da riqueza e da fama, também são arcabouços da pobreza e isso é uma realidade crua. Ela escraviza, cria subempregos e trabalhos análogos à escravidão. A prova são as inúmeras lojas de grife sendo pegas mantendo em regime cruel seus trabalhadores, geralmente nordestinos ou bolivianos. Se aproveitam da fome, da necessidade aterradora de dar comer aos filhos, de se manter vivos no mundo.

Almeida Garrett, dramaturgo da coroa portuguesa do século 19, perguntava quantos pobres são necessários para manter um rico. Não é preciso este cálculo, mas a resposta sempre nos leva à mesma palavra: muitos.
Tudo isso para quê? Para uma socialite gastar 15 mil em um vestido e usar uma única vez. Para uma estrela dos palcos gastar 74 salários mínimos (o equivalente a seis anos de um trabalhador assalariado no Brasil) para exibir um vestido com 10 mil cristais, feitos, provavelmente, por quem ganha apenas 945 reais por mês.

Muito pior que isso, para que jovens se prostituam, percam sua dignidade, se submetam à ilusão das mídias sociais e se tornem tristes e infelizes. Para que nordestinos e bolivianos sofram 18 horas por dia em porões insalubres para ganhar 60 centavos de real por cada calça vendida a centenas de dólares nas vitrines das grandes grifes.

Tudo isso, para uma socialite se despir sozinha na claridade de seu closet e exibir no espelho seu corpo cansado pelo tempo. Para esconder a tristeza nos olhos por ter, em mais um dia, se esforçado no seu máximo para se mostrar melhor que os outros. Para morrer de medo de um dia perceberem nela apenas um ser humano comum, sem nada de diferente dos outros senão um vestido incômodo, pesado e insuficientemente incapaz de reproduzir a felicidade de uma criança brincando na lama.

https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1535672336510923&set=a.106809462730558.10118.100002045143422&type=3&theater

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário