Por Edmilson Lopes Jr.
Durante décadas, os infames Processos de Moscou e os campos de concentração
(Gulags), produtos mais vistosos da perversão totalitária na antiga União
Soviética, foram encarados, por comunistas sinceros e abnegados, como
narrativas abjetas, construídas pelo anti-comunismo e/ou pelo imperialismo.
Mesmo após o demolidor Relatório Krushev muita gente boa continuou a negar a
realidade. Outros, demonstrando um demência moral, passaram a relevar e a
relativizar as perversões. Relatos que vinham de dentro, produzidos por gente
que se entregara à construção do regime, eram vistos como falas de traidores. E
o culto à personalidade continuou por décadas na ex-URSS e em outros países.
Fez escola, como se diz. Na China, gerações recitaram coisas como "mamãe
me ama, papai me ama, mas quem zela pelo meu sono é o Camarada Mao...". O
culto à personalidade e a negação dos fatos abduziram o pensamento crítico de
milhões.
Quando a gente lê sobre as experiências totalitárias, sei lá!, por um momento, é meio que tentado a pensar aquelas depravações morais como expressões de um momento infantil na história da humanidade. Algo como uma manifestação de uma imaturidade já superada. Infelizmente, não é bem assim. Boa parte da esquerda ainda sacrifica a crítica e, não dá para não dizer, o próprio intelecto para preservar o que entendem fundamental ou central (antigamente, "as conquistas do socialismo"; hoje, "as conquistas sociais").
Durante muito tempo, gente boa e que se sacrificava pelo comunismos de corpo e alma, acreditava piamente que, sim, existiam "provas" contra a velha guarda bolchevique torturada e vilmente assassinada em consequência dos infames processos. Hoje, gente que se diz crítica afirma veementemente que faltam "provas" contra Lula.
A crítica ao totalitarismo produzida por uma esquerda já ciente das elaborações do eurocominismo, dos ensaios de Castoriadis e das demolidoras narrativas de Jorge Semprum, era um traço distintivo de parte da esquerda que ajudou a criar o PT no final da década de 1970. O lulismo não era naquele tempo muita coisa além de uma certa admiração moderada a um líder sindical. Mesmo assim, lembro, eu que era do PT, mas militava em um agrupamento da esquerda clandestina, o mal-estar que sentíamos com algumas formas de tratamento dispensada ao "Líder". Fui a um ou dois encontros nacionais e sempre ficava com uma certa vergonha alheia da forma como as pessoas se referiam ao Lula. Mas era anos 1980. Depois, afastei-me e fui fazer outras coisas. Quase no final da década de 1990, quando um ex-dirigente petista, o Paulo de Tarso, que ocupara cargo de destaque na administração de Erundina em São Paulo, passou a acusar o partido e o próprio Lula de práticas, como direi?, pouco ortodoxas e não tão assentadas eticamente, eu presenciei um encontro do PT em São Paulo. Não queria participar do evento, para ser sincero. Fui ao local apenas para encontrar um velho amigo, dirigente do partido no meu estado, Fiquei chocado. Lula rebatia as acusações de Paulo de Tarso reafirmando o culto à personalidade, que, eu percebia, não diminuíra após as duas derrotas então contabilizadas para a Presidência da República. Em seu discurso, em meio a palavrões, falava como dono do Partido e distribuía ordens e lições de moral como um velho coronel do interior do Nordeste. Ao sair dali, com o fel dominando a garganta, questionei o meu velho amigo sobre aquilo e ele, sem esconder o constrangimento, afinal fora meu companheiro naquela organização de esquerda que criticava exatamente o culto à personalidade, disse-me que ele realmente extrapolara, mas era compreensível, coisa do momento e que aquele momento não representava nem o Lula e nem o PT. Engoliu a coisa. Eu não, não consegui engolir jamais aquilo. Sedimentei ali a minha decisão de não me refiliar ao partido que deixara de militar, de verdade, no final dos anos 1980 e do qual me afastara fortemente ao defender, em debates e escritos, no referendo de 1993, o parlamentarismo.
Hoje, lendo o que se escreve sobre Lula nas redes sociais sou tomado novamente por uma imensa vergonha alheia. A mesma negação da realidade que fermentou o stalinismo revive, hoje, em forma retoricamente menos rebuscada. Inclusive a comprovar que o funcionamento da democracia não contém antídotos naturais contra os germes do totalitarismo. Então, tudo se passa assim: Lula e o PT não nos devem desculpa e nem autocrítica porque não fizeram mais do que lutar pelo povo brasileiro. Todas as provas inseridas em não sei quantos processos não passam de armações. E o Imperialismo Norte-Americano, essa coisa essencialista e imutável, que funcionaria com a mesma lógica sob Reagan e Obama, seria o arquiteto de toda uma trama para destruir uma "alternativa" para o Brasil.
E aí, a demonstrar que a história não para de produzir suas repetições farsescas, temos essa tentação suicida de todo um campo político se auto-imolar para garantir a continuidade de uma candidatura insustentável. Não dá para não lembrar daquelas trágicas diretrizes da Internacional Comunista que fizeram uma equivalência entre social-democracia e fascismo e abriram uma avenida para a ascensão do último. É trágico, embora cômico também não deixe de ser.
Enviado pelo professor, escritor, pesquisador do cangaço e gonzagueano José Romero de Araújo Cardoso
http://blogodmendesemendes.blogspot.com
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