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sábado, 9 de junho de 2018

LUIZ GONZAGA É CEM: HOMENAGEM DE GILBERTO GIL

Abílio Neto · Abreu e Lima, PE

Um dos artistas mais inteligentes deste país, Gilberto Gil é o rei das frases polêmicas para provocar os idiotas a falarem mal dele: ”A expectativa geral da política e da sociedade brasileira é que governantes têm de ser muito machos. Governantes têm de ser meio machos. Têm de ser fêmeos também porque senão ficam desequilibrados, só de um lado”.

Um dos responsáveis pelo “desbunde” da época do tropicalismo, ele chegou a ser acusado de apologia à homossexualidade nos relatórios do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), durante seu período de exílio em Londres. Isso porque Gil requebrava e se permitia trocar afeto com Caetano Veloso em suas apresentações na Inglaterra. As vacas fardadas nunca entenderam isso como uma forma pacífica de protesto contra o atraso, a falta de liberdade e toda caretice que chegaram juntos com o coturno e a baioneta. Às vezes não é preciso pegar em armas...

O tropicalismo foi criado nessa fase da história brasileira em que a palavra “revolução” era tão pronunciada quanto “globalização” o é nos dias de hoje. Esse movimento intelectual e artístico foi uma tentativa sadia de enxergar o Brasil com olhar renovador. Ironizou o atraso do país com seus impasses, rompeu com a velha mania de acomodar contradições anunciando uma “geléia geral” calcada nos versos geniais de Torquato Neto, grande parceiro de Gil. Acho que foi um movimento que expôs como ridículos os valores nacionais exaltados pelos milicos e seus seguidores falsos moralistas. Por outro lado, onde o samba de morro tradicional só poderia ser concebido sob uma leitura única para ser bem recebido pelo povo, os tropicalistas fizeram da guitarra elétrica uma causa política e a introduziram no ritmo. Além disso, seu espírito norteador era cosmopolita e isso captou energias revigorantes para a música brasileira. Um dos seus grandes feitos foi justamente atravessar fronteiras e buscar diversidade através de conexões ricas e inesperadas capazes de romper barreiras internas quanto ao que se refere à produção musical. Gil se tornou um dos expoentes do movimento, porém antes disso tentou ser um executivo de empresa. A história se deu assim:

“O gerente da Gessy Lever, Vicente Creazzo, andava com a pulga atrás da orelha. Sua auxiliar Edma teimava em abandonar o posto e deixar a pequena sala em que trabalhava às escuras. ‘É para economizar energia, seu Vicente’, dizia ela. A desculpa esfarrapada atiçou ainda mais a curiosidade do chefe, que abriu a porta e acendeu a luz. Deparou com um rapaz estendido no chão, roncando como um inocente. ‘Esse cara é maluco!’, esbravejou Creazzo, antes de bater a porta e acordar Gilberto Gil, que passara a noite no Juão Sebastião Bar, templo da bossa nova em São Paulo, tentando convencer Elis Regina a gravar Louvação. Gil, que ganhava o equivalente a US$ 700 por mês, era trainee e estava sendo preparado para virar executivo, mas o convívio boêmio com outros músicos o obrigava, cada vez mais frequentemente, a dormir de manhã na sala da colega. ‘Gil, essa vida de gerente é medíocre, não tem nada a ver com você’, emendou Creazzo. Hoje, Creazzo está casado com a ex-assistente Edma, a cúmplice de Gil, e o baiano é um dos músicos brasileiros do século.

Filho de um médico e uma professora primária, Gilberto Passos Gil Moreira nasceu em Salvador (26 de junho de 1942) e passou a infância em Ituaçu, no interior da Bahia, onde admirava os sanfoneiros ceguinhos das feiras nordestinas e, principalmente, Luiz Gonzaga. Em 1959, era o acordeonista de Os Desafinados, que se apresentava em festas e bailes, mas já estava fisgado pela bossa nova. ‘Desde a primeira audição, fiquei absolutamente seduzido por João Gilberto’, disse Gil a ISTOÉ. O encontro de Luiz Gonzaga e João Gilberto, numa esquina imaginária na cabeça de Gil - onde também ecoaram os acordes da banda de pífaros de Caruaru (PE), dos Beatles e da guitarra de Jimmy Hendrix - abriu espaço para o tropicalismo, movimento que ele liderou com Caetano Veloso no final dos anos 60.

Gil não era só o feiticeiro que mexia a colher do caldeirão musical da tropicália. Tinha as virtudes do eficiente executivo que não chegou a ser. ‘Sabia lidar com as pessoas, formar seu próprio time e era um estrategista. Teria sido um gerente exemplar’, lamenta o ex-chefe Vicente Creazzo. O terremoto causado pelo tropicalismo levou Gil à prisão e ao exílio em Londres. Nos anos 70, já de volta, a esquerda o criticava por não fazer canções engajadas como as de Chico Buarque. ‘No fundo, minha autonomia incomoda. Não sigo cartilhas’ afirma Gil. As virtudes de aglutinador voltaram a se manifestar nos anos 80, quando entrou na política. Chegou a cumprir um mandato de vereador na capital baiana (1988-1992). ‘Abracei a política por conta de meu temperamento impetuoso e experimental. Mas ela é a representação da guerra em que os adversários viram inimigos. Se pouco me deu, pelo menos me fez compreender que, por natureza, sou diplomático e odeio a idéia de suprimir aquele que não concorda comigo.’”

O cantor e compositor Gereba, amigo de Luiz Gonzaga, conta uma experiência interessante que viveu com ele no seu sítio de Exu em 1985. Ali o músico baiano aportou para convidar o pernambucano para fazer o Carnaforró em Salvador e pôde conhecer de perto e gravar aquele repertório que Seu Luiz lamentava ter ficado no esquecimento, soterrado pela força avassaladora do baião que a tudo arrebatou.

“Bem que essa noite eu vi gente chegando / Eu vi sapo saltitando e ao longe ouvi o ronco alegre do trovão / Alguma coisa forte pra valer tava pra acontecer na região / Quando o galo cantou, o dia raiou, eu imaginei / É que hoje é 13 de dezembro / E nesse 13 de dezembro nasceu nosso rei.” (Gilberto Gil em melodia de Luiz Gonzaga de 1952)

Disse Gereba: essa “gente chegando” que o nosso poeta Gil diz no primeiro trecho do choro 13 de dezembro da sua nobre parceria com Luiz Gonzaga, é na verdade a nossa chegada em Exu – minha, do parceiro Carlos Pitta e nossas namoradas – na madrugada de 12 pra 13 de dezembro de 1985. Lá ficamos por cinco dias a convite do nosso Rei do Baião para comemorar o seu aniversário pelos clubes de cidadezinhas vizinhas. Foram dias muito prazerosos para todos nós: Eu, Gonzaguinha, Marinês, Dominguinhos, Gilberto Gil, Carlos Pitta, Santana, Waldonys, Jorge de Altinho, Alcimar Monteiro, Camarão, Chiquinha Gonzaga, Joquinha Gonzaga e muitos outros da família.


Eu estava ali naqueles dias também em uma missão muito especial: convidar Luiz Gonzaga para inaugurar o projeto “CARNAFORRÓ” no carnaval da Bahia de 1986. Quando fiz o convite a “seu” Luiz, ele me disse: Já estou com 73 anos e não vou ter condições de enfrentar aquela multidão da Praça Castro Alves.

Foi um banho de água fria, para me refazer do choque. Fui até a cozinha tomar um copo de água. Cocei a cabeça e disse pra mim mesmo que precisava pensar em algo que demovesse aquele não. Como sou teimoso de natureza e não costumo desistir fácil das boas idéias, pensei que a orla marítima, entre o Porto e o Cristo da Barra, seria um lugar tranqüilo e que daria mais conforto pra “seu” Luiz, e então arrisquei:

“Seu” Luiz, o senhor topa tocar com a gente no Farol da Barra, um lugar bem ventilado com aquele marzão na nossa frente e vai ser só a gente com o nosso forró, pois nunca rodou nenhum trio elétrico por lá. Hospedo o senhor no hotel Praia Mar, que fica no Porto da Barra, paro o trio na porta do hotel, a gente segue até o Cristo e voltamos. No trio tem camarim com ar condicionado, uma água de coco e de vez em quando o senhor sobe as escadinhas e toca uns forrozinhos com a gente, o resto pode deixar comigo, Dominguinhos, o Grupo Bendegó e Bule Bule. Ai ele disse: deste jeito eu topo, contanto que esse trio sirva pra divulgar o São João no carnaval.


Seu Luiz gostou tanto de tocar no trio CARNAFORRÓ que voltou nos carnavais de 1987 e 1988, só não cantou pra gente em 1989 porque, como diz Capinan, “foi chamado pra tocar no céu, na fogueira de Deus, pra alegrar a imensidão”.

Este episódio, de forma despretensiosa, acabou por gerar desdobramentos muito saudáveis para o nosso carnaval baiano, pois o nosso trio de forró foi o primeiro a rodar pela orla marítima, atraindo, já em 1987, o deslocamento do já insuportável circuito do carnaval do Centro Histórico para a Orla Oceânica, criando o agora tradicional circuito Barra/Ondina. Naquele período isso significou a redução da violência em 60% nos dias da folia. Considero esse circuito um legado nosso, embora nunca nos tenham atribuído nenhum crédito.

Durante a minha estada em Exu, nos fins de tarde, eu ficava ali de prontidão com meu gravadorzinho de fita cassete gravando aquelas saborosas estórias de Seu Luiz como a do “conto da sanfona”. E foi assim que registrei a primeira audição do choro 13 de dezembro. Era já noitinha quando Gil chegou com seu violão e um pedaço de papel de pão na mão escrito com a letra do belo choro que Seu Luiz fez em 1952. Gil cantou com aquele swing maravilhoso que só ele faz em seu violão. Depois de apresentar o choro, deu um beijo na testa de Seu Luiz e todos nós vimos ele corar e muito emocionado dizer: “Dominguinhos, eu acho que vou criar esse neguinho”.

Foi um momento lindo e raro pra todos nós naquele finalzinho de tarde. Tivemos muitos e muitos outros momentos prazerosos, como ver Dominguinhos tocando de maneira impecável o 13 de dezembro pra Seu Luiz na cozinha. Caminhar pelos arredores da fazenda com ele é uma das mais gratificantes lembranças que guardo comigo. Uma vez ele me levou até a parte mais alta e disse que era ali naquela plataforma que ele sonhava construir o maior forró do mundo, pro povo dançar ao ar livre. Quando assisti ao filme Dodescaden do Kurosawa, que tem a cena do pai e o filho delirando em uma carcaça de um carro velho, me lembrei muito dessa cena com Seu Luiz.

Gilberto Gil, o letrista do choro “13 de Dezembro” é o artista brasileiro que mais se inspirou em Luiz Gonzaga para construir sua sólida e brilhante carreira. Compôs lindos baiões, xotes e, além disso, cantou como ninguém suas músicas. É bom lembrar que, em 1971, Gonzaga gravou um de seus maiores clássicos, a música “Procissão”, porém não se deve jamais olvidar o que Gil já passou por conta da defesa da música de Luiz Gonzaga. Eu sabia disso, mas ele nunca havia revelado. Fez isso numa belíssima entrevista para o site Terra Magazine em 27/02/2012, de onde eu recortei isto aqui:

“Terra Magazine - Na última década, você se reaproximou bastante de Luiz Gonzaga. O que isso representa para sua carreira? No início de sua vida no Rio de Janeiro, nos anos 60, você teve choques constantes em defesa de Luiz Gonzaga. Uma vez você chegou a sair chorando de uma discussão... Gilberto Gil: - De uma discussão com colegas... Sim, porque eles achavam Luiz Gonzaga folclórico.
É, de gente chegar pra mim e dizer: ‘Não, nós somos adeptos do Tom Jobim. Gonzaga, não. Até Caymmi a gente vai’. Terra Magazine - Gonzaga era quase o ‘arrocha’. Gilberto Gil - A conversa era essa. Eu tive conversas desse tipo. O que os impelia, o que os incitava, o que os informava no sentido de admitir essa rejeição a Gonzaga, era essa convergência dos eruditismos que a Bossa Nova, de uma certa forma processou. Era uma coisa assim: tudo que não estivesse nessa percepção de aprofundamento, de avanço harmônico e melódico, de texto, da palavra, da poesia na música, da palavra cantada, estava numa dimensão ‘folk’. Era uma ingenuidade ‘folk’. Ou aquilo que se diz em pintura...”

É por este motivo que reafirmo que Gilberto Gil foi tão importante para a sobrevivência da música de Luiz Gonzaga que foi escolhido por Dominique Dreyfus para escrever o prefácio do melhor livro publicado sobre o Rei do Baião: “Vida do Viajante – A Saga de Luiz Gonzaga”. Nele, escreveu Gil: “Eu, como discípulo e devoto apaixonado do grande mestre do Araripe, associo-me às eternas homenagens que a História continuadamente prestará ao nosso Rei do Baião, abrindo ao leitor, com palavras de louvor e gratidão, as páginas deste livro”.

Escolhi entre todas as músicas de Luiz Gonzaga gravadas por Gil, o xaxado “Óia Eu Aqui de Novo”, de Antonio Barros, ao qual ele deu uma interpretação definitiva. Confesso que é muito difícil escolher qual a melhor gravação dele das músicas de Gonzaga. Este xaxado está em um CD de 2000 que contém a trilha sonora do filme “Eu, Tu, Eles” e é um dos melhores discos da música brasileira. A composição musical foi originalmente gravada por Gonzaga em 1967. A outra música a tocar para enriquecer este texto, é o próprio choro de Luiz Gonzaga (por acerto de parceria, o disco trouxe também o nome de Zé Dantas) “13 de Dezembro”, com a brilhante letra de Gilberto Gil. E mais duas homenagens eu quero prestar ao final desta série: a intérprete escolhida por mim é a paraibana Elba Ramalho, artista muito querida e ligadíssima a Gonzaga, com acompanhamento de sanfona do Mestre Dominguinhos, o mais destacado herdeiro artístico do Rei do Baião e um dos maiores músicos do mundo! Está no CD “Leão do Norte”, de 1996, um dos mais inspirados discos de Elba. A faixa teve também a participação do conjunto de choro “Época de Ouro”.

Parabéns àqueles que escolheram o violonista, cantor, arranjador e sanfoneiro baiano Gilberto Gil como principal atração da festa dos 100 anos de Gonzaga em sua terra natal, Exu/PE, no próximo dia 13 de dezembro de 2012. Nada mais justo!!! Até porque é a voz de Gilberto Gil que recepciona o espectador que vai assistir ao filme “Gonzaga - De Pai Para Filho”. Os versos da canção-tema composta por ele, “No Mundo da Lua” embalam as primeiras cenas que mostram o Rei do Baião entoando seu clássico “Asa Branca” e sendo observado a partir das coxias por um garoto, mais especificamente seu filho Luiz Gonzaga do Nascimento Junior, o Luizinho para seus parentes de Exu e Gonzaguinha para nós outros.

Sobre a obra
O mais famoso devoto de Luiz Gonzaga: o baiano Gilberto Gil.

http://www.overmundo.com.br/banco/luiz-gonzaga-e-cem-homenagem-de-gilberto-gil

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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