Por Assis
Chateaubriand
É uma ilusão
acreditar que, morto hoje “Lampião” e exterminado amanhã “Corisco”, teremos
feito a extirpação do cangaceirismo no Nordeste. A própria impunidade de
“Lampião”, por tantos anos evidencia a natureza possante, que o abriga, o
deserto generoso que o protege. Só uma autoridade pode estabelecer-se
permanente, duradoura, dentro daquelas caatingas agrestes. É a lei do mais
forte (...). Pode a polícia volante estabelecer momentaneamente o império da
lei em um ponto dado. E matar dez, doze, quinze bandidos. Outros tantos
irromperão mais além, polarizando o remanescente do bando militarmente
aniquilado, porém não socialmente destruído.
A pujança do
movimento do cangaço corresponde à vastidão do mundo ermo e abandonado de que
ele vive. Para a importância do mal perpetrado pelo banditismo sertanejo, há
uma colaboração decisiva do fator meio. Oferece uma medíocre ideia da sua
compreensão das causas do cangaço o que tentar apreciá-lo em função exclusiva
do coiteiro, da coragem dos bandidos que o exercitam profissionalmente, ou da
passividade dos governos dos Estados, onde ele é teatro. Jamais houve maior e
mais íntima correspondência entre o crime e a terra que o produz. Vejam em
quanto os tesouros pobres dos estados do Nordeste já se exauriram para se
libertar de “Lampião”. Só ao de Alagoas essa última campanha lhe custou 400
contos. “Lampião” pode não ter roubado nem cinco mil contos em suas razias. Mas
terá custado a sua perseguição aos erários cearense, rio-grandense do norte,
paraibano, pernambucano, alagoano, sergipano e baiano mais de vinte a trinta
mil contos. Vi um governador em Pernambuco, Herculano Bandeira de Melo, dizer a
meu pai esta frase antes de assumir o governo: “Vou consagrar-me ao sossego da
família sertaneja. Se prender Antônio Silvino, terei realizado tudo no meu
governo. Se o não prender, não terei feito nada.”
Esse homem não
mediu esforço numa tenaz campanha exterminadora do cangaço. Antônio Silvino
ainda zombou mais de cinco anos de caça policial.
E a verdade é
que, encarcerado Antônio Silvino, a sua coroa passava à cabeça de “Lampião”. E
com que grandeza esse rei do cangaço trouxe aquele símbolo da sua onipotência
malfazeja! Antônio Silvino era um cangaceiro-menino comparado com “Lampião”.
Como o cabra alagoano, tombado nos Angicos, dilatou o poder do príncipe do
crime sobre as terras viciosas do sertão! Cotejam a corte lampionesca,
atingindo até 50 homens, com a rala falange de Silvino. Ao contrário do que se
poderia imaginar, preso Antônio Silvino, o seu sucessor reorganizou o cangaço com
uma autonomia sertaneja, e uma liberdade de movimentos como não tinha o chefe
prisioneiro.
A impunidade
do cangaço é uma resultante inevitável do despovoamento dos sertões, do
inevitável do coiteiro; pela fraqueza do Estado, da natureza da caatinga onde se
acoita o banditismo e da penúria das vias de comunicações de certas regiões do hinterland
nordestino. Por que não medra mais quase o cangaço no Rio Grande do Norte, na
Paraíba e no próprio Ceará? Por que “Lampião” mal podia operar em incursões
rápidas nos territórios destes Estados? É que os sertões deles dispõem de uma
rede de comunicações rodoviárias e de núcleos de populações mais densos, como
não tem Alagoas, Sergipe e o norte da Bahia. Varei, justo há 21 anos, quase
todo o sertão de Alagoas, atingindo as vizinhanças de Piranhas. Quase por toda
parte só se me deparava o ermo. Como perseguir um grupo de homens protegido
pelo deserto e dispersos dentro da caatinga?
Repeliu o
capitão Juracy Magalhães no governo da Bahia, a façanha de Herculano Bandeira.
Transformou a liquidação do banditismo em programa de governo. Olhem no mapa a
zona do sertão baiano, assolada por “Lampião”. Respira o abandono da planta
humana.
A extinção do
cangaceirismo é função da posse do habitat sertanejo pelos instrumentos de
civilização. Sem o progresso, teremos ali permanente a endemia do cangaço. O
crime comum (e o cangaceiro que literatos de latão procuram romantizar é um
criminoso vulgar, um ladrão e um assassino) é a diátese inevitável, decorrente
da impunidade com que o meio físico abriga o malfeitor.
O Jornal (RJ)
– 05.08.1938
Adquirido no acervo do pesquisador Antônio Corrêa Sobrinho
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário