
Autor – Ricardo Wagner Alcântara – Professor do Departamento de Direito Público da UFRN e Procurador da Fazenda Nacional.
A Via Costeira e seu entorno representam a fatia mais valiosa da nossa cidade. Talvez nenhuma cidade do Brasil tenha nove quilômetros de praia praticamente livres, com uma área tão esplêndida, tão próxima de tudo, tão próxima das pessoas, apta a elevar o modo de viver e conviver numa cidade. Os motivos que explicam o abandono da Via Costeira, sua não integração definitiva ao conjunto de espaços públicos da cidade e seu futuro que se desenha radicalmente privatizado, são históricos e ganharam contornos criminosos nos últimos meses. Há uma grande tramoia em franca operação.
Você certamente já deve ter se perguntado como aqueles hotéis foram parar ali e porque ainda existem tantos terrenos livres à beira-mar e como a cidade ganharia se os nossos governos estadual e municipal concordassem em transformar toda aquela área ou grande parte dela em espaços de uso coletivo.

Eles poderiam estar pensando numa Via Costeira com parques, jardins, mirantes, anfiteatros, pistas de skate, palcos, quadras poliesportivas, trilhas à beira-mar, muita área verde e outros equipamentos de utilidade pública que fazem uma cidade boa de se viver e de se visitar.
Já imaginou uma orla desse tamanho com todo tipo de equipamentos de lazer, com acessos, segurança e transporte público para gozo de todos os natalenses e turistas? Tudo feito nos mais estritos padrões de respeito ao meio ambiente e à paisagem? Certamente, a Via Costeira é o espaço que poderia mudar Natal para melhor e projetá-la para o futuro. Para os moradores e para os turistas.
E por que esse sonho não se torna realidade? Por que a Via Costeira está abandonada, com tantos espaços vazios e sem a mínima infraestrutura para uso da cidadania natalense?

Simplesmente porque existe uma sofisticada operação dirigida à usurpação desses valiosos bens públicos. Essa tramoia é operada por agentes privados, por gabinetes estaduais e municipais.
Um dos sentidos da palavra tramoia vem do teatro. É um maquinismo oculto, secreto, fora da boca de cena, com o qual se operam mudanças cenográficas, desaparecimentos e súbitos aparecimentos. A imagem é perfeita para entender o que acontece na questão da Via Costeira.
Precisamos entender que esse processo se iniciou há uns 40 anos, quando alguns próximos do poder receberam terrenos públicos para construção de hotéis financiados, em grande parte, por recursos públicos. Muitos projetos não saíram do papel e a Via Costeira permaneceu com vastos espaços vazios. Os onze acessos da população à faixa de praia jamais foram arranjados adequadamente e nenhum equipamento público de vergonha foi construído para os moradores de Natal e turistas em todos esses anos.

Ignorando esse processo de desleixo intencional, parte da população resiste e ocupa “Os Pinheirinhos”, em meio ao lixo, aos buracos e à insegurança.
Evidentemente, esses grandes vazios são, hoje, alvo do apetite voraz do “trêide” turístico e do mercado imobiliário. Eles lutam em várias frentes, com armas desiguais e estão conseguindo, rapidamente e sem resistência, ficar com o resto dos oito grandes terrenos, com uma legislação votada a toque de caixa que os favorece amplamente e operações tão obscuras que as principais autoridades responsáveis pela fiscalização das coisas públicas estão tão ignorantes dos fatos quanto nós.
Essa maquinação obscura tem demandado a atuação decisiva do gabinete do Procurador-Geral do Estado, um comunista que tem sido gentilíssimo com o capital mais devastador –, e do Município de Natal, que adotou conjunto de normas que permitirá a usurpação completa e definitiva da área.

A dirigente estadual é do PT (Fátima) e o chefe do Executivo municipal é do União Brasil (Paulo Freire). Uma se diz de esquerda e outro de direita. Eles nos fazem acreditar que são muito diferentes quanto à defesa do patrimônio público e ao meio ambiente. A gente acredita nisso e até se engalfinha em brigas intermináveis. Mas, o que talvez você não saiba ainda, é que eles têm a mesmíssima postura entreguista em relação à Via Costeira. Em comum acordo com os agentes do mercado imobiliário e os deslumbrados do “trêide” turístico, eles querem construir prédios residenciais e outros equipamentos de luxo para quem puder pagar caro naqueles espaços livres. Trata-se de clara privatização escancarada de bens públicos, sem qualquer espécie de concorrência pública.
Como essa operação de grilagem está sendo operada fora da cena pública?
A combinação de esforços entre Estado do RN e Município de Natal para vender a Via Costeira tem a ver com a natureza dos interesses e direitos na área. Para usurpar esses valiosos bens que fazem parte da história e do imaginário de qualquer natalense, é necessário combinar regulações urbanísticas (a cargo do município) com questões dominiais (Estado do RN).

Na Via Costeira, de nada adiantarão as permissivas regras de planejamento urbano do Plano Diretor de 2022 e da Lei n. 12.079/2025, se as questões de domínio (propriedade) não estiverem resolvidas. Para fugir do juridiquês: o Município de Natal pode pretender liberar o tipo de construção que quiser, como quiser, na altura que quiser, nas condições que seus poderes acharem convenientes. Mas é preciso que o dono dos terrenos na Via Costeira – o Estado do Rio Grande do Norte – queira cooperar com a transferência ilegal do patrimônio público para particulares e com a anulação de qualquer possibilidade de implantação de equipamentos de uso coletivo.
Resumindo: o absurdo plano de privatização dos terrenos da Via Costeira não iria adiante sem a cooperação, sem a participação, sem a entrega de mão beijadíssima dos terrenos pelo Estado do Rio Grande do Norte, a partir de uma operação gestada no gabinete mais alto da Procuradoria-Geral do Estado.

Mas como essa combinação safada, que objetiva transferir bens públicos para entes privados, e que demanda a convergência improvável entre um governo de direita e um de esquerda, pode estar acontecendo?
Há muito o que investigar. Há muitas instituições que precisam enfrentar essa situação. Mas o que se apurou até aqui é que o gabinete da PGE, nas coxias, sem ouvir os procuradores da área patrimonial, exumou alguns cadáveres há muito sepultados…
Como já afirmei, a maior parte dos espaços vazios na Via Costeira ainda existem porque concessões dadas a hoteleiros há mais de 40 anos caducaram. Eles ganharam os terrenos, não construíram, não cumpriram suas obrigações e perderam os terrenos. A DATANORTE, que era o braço do Estado do Rio Grande do Norte que detinha o domínio de muitos desses espaços, retomou judicialmente esses terrenos.

Os antigos donatários, que tinham ganhado de graça, perderam as concessões. Isso tudo estava arquivado, mortinho da Silva. O Estado poderia fazer o que bem quisesse com os terrenos: uma grande chance para a cidade!
Mas os atuais governos estadual e municipal, sofrendo enorme pressão de empreendedores, tinham outro plano. E esse plano não envolve a cidade, não inclui os moradores de Natal e os turistas. Os detalhes são sórdidos.
O Estado do Rio Grande do Norte, já vitorioso nas ações de rescisão contratual com os antigos donatários (permitam-me chamar assim), e já legítimo e absoluto dono dos terrenos vazios da Via, desenterra esses cadáveres e celebra, com os antigos donos, um novo e inacreditável acordo. O nome é bonito: Termo Aditivo de Acordo de Renovação da Concessão de Direito Real de Uso.

O que o Estado fez foi algo assim: você tem um imóvel e seu inquilino não cumpre as obrigações contratuais. Você entra com uma ação na justiça e obtém uma sentença judicial reconhecendo o direito à retomada do imóvel. O inquilino inadimplente vai para casa lamber as feridas da derrota. Após algum tempo, você, num surto psicótico generoso, chama o antigo inquilino e diz para ele que você quer vê-lo de novo no imóvel. Vocês vão a juízo e pedem ao juiz para homologar esse acordo.
Se fosse sua casa, não seria mais que um surto psicótico. Mas como se trata de coisa pública, e essas coisas estão acontecendo atrás das cortinas, o acordo é imoral e ilegal.
Onde está o interesse público nessa renovação?

Qual a razão desse desarquivamento justamente após o Plano Diretor de 2022? Como ele está encadeado com a Lei Municipal n. 12.079/2025 que permite a ocupação da área pública por entes privados, em especial residências? Seria a possibilidade de redistribuição dos terrenos dos antigos donos para novos empreendedores, mais uma vez sem qualquer tipo de concorrência pública?
Se o Estado já estava na condição de pleno proprietário, a devolução dos terrenos da Via Costeira aos antigos donatários atende a quais objetivos?
Na minha interpretação, são dois: 1) permitir o aproveitamento dos terrenos da Via sob as novas regras urbanísticas com desvio de qualquer processo licitatório e 2) evitar qualquer rediscussão sobre a destinação pública dos terrenos.

Essas questões, no meu modo de perceber a opaca maquinação em curso, deveriam atrair a atenção da parte do Ministério Público que cuida do patrimônio público. Igualmente, ao TCE cabe investigar e julgar como se perpetua essa distribuição gratuita de terrenos públicos a entes privados sem licitação. As mesmas perguntas, eu dirijo ao MP junto ao TCE e a todos os órgãos de controle. As circunstâncias dessa exumação de processos arquivados e da estranhíssima ressurreição das concessões, exatamente no momento em que o Município de Natal quer desfigurar um dos nossos bens mais preciosos e entregá-lo a uns poucos amigos, precisam ser trazidas à luz do palco.
https://tokdehistoria.com.br/
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário