Seguidores

quinta-feira, 31 de maio de 2012

ERA UMA VEZ NO SERTÃO (Crônica)

 Por: Rangel Alves da Costa*
Rangel Alves da Costa

ERA UMA VEZ NO SERTÃO

Era uma vez no sertão uma terra ainda em formação, apenas descampado e desolamento, sem que o olho de Deus por ali repousasse e desse uma destinação.

E o Criador achou por bem que o chão seria tomado de aridez, com um sol bem forte espalhando calor sobre tudo e uma lua bonita tornando menos entristecido o anoitecer adentro.

Há quem reclame dessa opção, achando que deveria ser mais clemente e não deixando o sol maior sempre desacompanhado do sombreado das nuvens, sem nimbos carregados no horizonte e de quase nenhum chuvarar para aplacar a sequidão.

Mas com a medida divina não se discute. Se deu tanto sol, tanta estiagem, tanta terra esturricada, tanta planta já morrendo sem vingar, tanto padecimento e tanta pobreza, é porque deixaria por ali outras características diferentes em outros povos e lugares.

Fez o sertanejo um forte acima de tudo; disse que não haveria em outro lugar um luar tão bonito como aquele brilha no sertão; permitiu que nascesse uma raça cabocla cheia de orgulho, de fé e de esperança, um povo mais rico que todo mundo, pois ninguém faz render mais frutos apenas com o grão que semeará um dia.

Deu ao homem a força para a vida, para os desafios, para o trabalho; entregou a cada um seu rosário de oração, pois sabia que povo nenhum tem maior devoção, que clama por Deus na alegria e na incerteza, na precisão e na fartura, e por isso mesmo vive contente porque sabe que um pai não abandona o filho.

Permitiu que o sangue do sertanejo fosse diferenciado, mais autêntico, mais vivaz, tomado de encorajamento e preparado para jamais fugir da luta. Desse sangue vermelho e fervente de sol é que surgem nas suas veias tantos caminhos que percorre para fazer valer sua sina de valentia.

Não se quebra, não se curva; igual a catingueira do mato, resseca com sua imponência desnutrida e magricela, mas sempre pronto para enfrentar os desafios que a vida trouxer. Por isso mesmo é bicho de noite e de dia, é santo e excomungado, é cangaceiro e heroi, é Lampião e Padre Cícero, é Jesuíno Brilhante e Antônio Conselheiro, é procissão e tocaia armada.

Depois de criar a terra e fazer o homem, dando a um o nome sertão e ao outro o de sobrevivente, fez com que um não vivesse sem o outro e que até se misturassem num só. Daí que quando ouvir falar em sertão também estará o homem, quando ouvir da catingueira lembrará do sertanejo, pensar em seca e desolamento imaginará a triste figura em meio ao seu tempo.

A uns deu o trabalho na terra, o coivarar, o limpar o cercado para esperar a plantação de um dia, a sina de caçador, de vaqueiro, de aboiador, de dono de pouca terra, de pai de família imensa, de homem que se contenta em não passar fome, se arranchar debaixo de sua casinha, olhar a barra do amanhecer para pensar em chuvarada.

A outros deu destino diferente, caminho e estrada, veredas cheias de espinhos, labirintos cheios de inimigos, vez que nascido para a luta armada, para o enfrentamento das injustiças ou simplesmente pela vontade maior de acompanhar, de fazer parte de um bando de cangaceiros comandado por um certo Lampião.

Mas permitiu também os contrastes e as aberrações, com muita gente com tanto e a grande maioria com quase nada, com coronéis donos de terras e de gente e pessoas sem nem serem de si mesmas, com exploradores e explorados, ainda que de sangue navegassem no mesmo riachinho, com aproveitadores da inocência de muitos, e com tantos de nefasta sabedoria para enlamear até o nome da terra.

Deu a moringa e o pote, a cabaça e a cumbuca, mostrou o riacho com água nas profundezas, disse que a mata tinha de tudo para sobreviver; espalhou nome bonito, tanto João, Maria, Antonio e Josefa; fez homem amigo de bicho e este até seu parente, pois ninguém espane o vira-lata pois ele tem o seu dono, é do menorzinho da família.

Deu a beleza da manhã sertaneja e o maravilhamento do entardecer, um sonho bonito de sonhar sempre, uma esperança divina, uma vida que é sempre dádiva e jamais sina. E deu ainda a coalhada, o cuscuz e a perna de preá assada, e também o café torrado pelas mãos calejadas de tempo.
E deu a cada um misterioso olhar que enxerga um irmão em qualquer desconhecido que chegue por lá. Que entre seu moço, venha tomar um cafezinho e prosear um tiquinho, pois a estrada ainda é longa e a amizade abre o caminho.


Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário