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domingo, 1 de dezembro de 2013

Bangu, Memória de um Militante - Lauro Reginaldo da Rocha - Bangu - Parte V

Por Brasília Carlos Ferreira – Organizadora, 1992 


“QUARTO DIA”

Os novos métodos de tortura que a polícia estava pondo em prática eram considerados por ela própria como científicos. Os algozes recebiam ordens para evitar lesões físicas ou aleijões que pudessem, mais tarde, “dar na vista” e produzir provas “visuais” irretorquíveis nas vítimas. Só que esses métodos freqüentemente falharam. E quando um ficava louco, quanto outro punha termo à vida ou quando um terceiro – num gesto instintivo – tentava a fuga ou resistia à prisão era alvejado impiedosamente pelas costas, a “ciência” dos métodos tornava-se uma irrisão. E tais “falhas” eram consideradas apenas como acidentes lamentáveis mas, sem importância. 

Dentro dessa orientação “científica”, havia um médico acompanhando os trabalhos, com a missão de avaliar a nossa resistência física ou fazer soerguer as forças a um corpo que baqueasse. O médico que nos assistia – o doutor Mariozinho – era um sujeito pequenino, franzino. Ele veio me examinar. Olhou-me pegou no meu pulso, auscultou. E concluiu que meu estado físico era excelente, que eu era uma resistência fora do comum.  

Esse elogio, noutra oportunidade, muito me teria desvanecido. Mas naquela ocasião, ele queria dizer que eu estava em condições de suportar as torturas e que estas podiam continuar sem perigo.  

Eu sempre tive um grande respeito a admiração aos médicos, sempre achei nobre o honroso e seu mister de salvar vidas e diminuir os sofrimentos da humanidade. Mas ali estava um empenhado justamente ao contrário, em prolongar os padecimento de seus clientes. E essa era mais uma estranha revelação da “caixa de surpresas” da Polícia fascista do “Estado Novo”.  

Enquanto o clínico me examinava, o meu raciocínio divagava. Esse médico consegue entrar com facilidade em nosso organismo, vai ao coração, aos pulmões, pode vasculhar tudo por dentro. Mas há um ponto onde ele não conseguirá penetrar: no nosso pensamento. Isto porque, se ele conseguisse adivinhar o que estou pensando a seu respeito, na certa eu levaria agora mesmo, mais um bofetão ou um pontapé.  

O doutor foi embora mais sua visita agravou o meu estado de nervos. As esperanças de que as torturas pudessem ter um fim próximo se desvaneceram. Agora eu já sabia que as torturas iam continuar por muitos dias, pois o médico não acabara de concluir que o meu estado físico era excelente?  

Tive a impressão de que o peso na nuca aumentara vários quilos, a cabeça parecia estourar.  

A descarga do mictório continuou a funcionar ininterruptamente, o ruído da cascata enchia os meus ouvidos. A fome ia diminuindo – ela só me atormentou até o terceiro dia – enquanto que a sede ia aumentando. Tinha vontade de gritar água! água! mas me contive. Eu não devia dar demonstração de fraqueza e de desespero. Continuei de pé no canto da parede, oscilando, me firmando ora num pé, ora noutro, eu tinha que jogar o peso do corpo numa perna enquanto a outra descansava. Procurei me distrair espremendo as unhas, dedo por dedo, fazendo sair um pus fedorento, que estava sempre se renovando.  

Senti um estremecimento quando ouvi os primeiros passos no “quadrado”. Era a turma de espancadores que chegava com as novas vítimas. A sinfonia dantesca enche o ar. É uma repetição dos mesmos palavrões, gargalhadas e gemidos. 

A mistura das gargalhadas com os gemidos me causa uma estranha sensação, a inconseqüência dos sons me desconserta. Naquelas circunstâncias, a manifestação simultânea dos dois sentimentos diametralmente opostos – a dor e o prazer – era mais uma revelação da “caixa de surpresas”, eu jamais vira ou imaginara coisa igual.  

Depois que cessaram aqueles gritos, chegou a minha vez. Naquela noite, com o diagnostico do médico declarando que eu ainda estava em bom estado físico, os tarados caíram sobre mim com verdadeira volúpia. Um torcia um braço, outro torcia um dedo, outro apertava a garganta, pareciam urubus na carniça. Quando eu arquejava e as pernas cambaleavam, eles suspendiam as operações. Depois que eu reanimava, eles recomeçavam, procurando sempre os pontos mais sensíveis, as articulações, os órgãos genitais, os pulmões e o coração.  

A imaginação criadora dos verdugos é fértil. Eles estão sempre a descobrir pontos vulneráveis no organismo e a cada descoberta exultam como se tivessem descoberto um tesouro. Isto aconteceu quando eles descobriram um calo, muito sensível, no meu pé. Com um cabo de vassoura passaram o resto da noite a bater sobre o calo. É impossível descrever o que senti. Dessas pancadas originou-se um tumor entre os dedos, o pé inchou, ficou redondo como uma bola.  

CONTINUA...  

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