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domingo, 15 de fevereiro de 2015

“O GLOBO”- 21/11/1958 - PARTE XVI

Material do acervo do pesquisador Antonio Corrêa Sobrinho 

COMO SE FORJA UM CANGACEIRO

LAMPIÃO MORREU DORMINDO

Onde Está a Verdade Acerca do Fim do Rei do Cangaço? – Fidelidade de Maria Bonita e Brio de Luiz Pedro – Ferocidade da Força Que Dizimou o Bando – Impossível, Hoje, o Reaparecimento do Cangaço

EIS um capítulo que eu preferia não incluir nesta narrativa. Trata-se de assunto de grande repercussão e que é contado de diferentes formas. A maior parte dessas descrições foram dadas por soldados e, naturalmente, com cautela, pois os que estão do lado bom não gostam de mostrar certos detalhes. A morte de Lampião foi um alívio para o Nordeste, mas não creio que, com seu desaparecimento, cessassem todas as violências por aquelas bandas. Os abusos dos poderosos sobre os fracos, o desleixo do Governo, deixando o povo daquelas regiões no analfabetismo e no desamparo, serão sempre incentivos para o crime. A morte sempre estará rondando esses lugares, muito embora o cangaço seja difícil de renascer nesta época de aviação e exército bem equipados. Mas o povo que vive por lá ainda é o mesmo do meu tempo, só o armamento dos soldados evoluiu, pois a miséria ainda está bem viva, e, de quando em vez, temos a oportunidade de ver um pouquinho dela aqui na Capital Federal, representada pelos paus-de-arara, essas infelizes vítimas do flagelo das secas.

HISTÓRIA CONTADA

A MORTE de Lampião, na época, era o desejo de todo o país, razão pela qual as formas empregadas para concretizá-la não pediam justificativas. O fato é que Lampião morreu e está bem morto. Vejamos, porém, como isso se deu. O que sei da chacina de Angicos foi-me contado por Bananeira, um “cabra” que esteve preso comigo na Penitenciária de Salvador, e que cumpriu pena curta, graças às acusações que fez contra mim. Muitas das “acusações”, ele nem presenciou, afirmou por ouvir dizer, inclusive a matança de soldados em Queimada, na qual, conforme já esclareci, eu não tomei parte.

Bananeira à esquerda e Volta Seca à direita

Mas Bananeira saiu cedo da cadeia e reuniu-se a alguns “cabras” que estiveram em Angicos e que conseguiram escapar por terem fugido quando começou o tiroteio. Entre os que fugiram, estavam Corisco, Gavião, e mais alguns, inclusive Balão, Nevoeiro e Relâmpago, estes três ainda vivos. Eles contaram como o caso se passou ao Bananeira e este tornou público os fatos. É baseado nessas narrativas que vou tentar reconstituir como se deu o fim de Lampião.

Coronel João Bezerra o matador de Lampião

Seguidamente tenho ouvido descrições de parte de soldados, e a maioria dos fatos são os movimentos de tropas dos comandados do atual coronel Bezerra. Este mesmo, recentemente, detalhou o que se passou naquele dia da morte de Lampião. Infelizmente, o que ele contou não enquadra com o que me contaram os “cabras” presentes à luta. Todavia, de qualquer forma, é um depoimento. O coronel Bezerra contou algo, e como quem conta um conto aumenta um ponto...


Vejamos agora como a história se passou, observada por quem era do bando.

TUDO ERA PAZ

Lampião estava com seus “cabras” na fazenda de Angicos, acampado e bem protegido por uma teia de coiteiros. Estava tranquilo e nem de leve imaginava que aquele era seu último dia de vida. Mal podia supor que naquela data terminaria sua longa carreira de crimes. Ele tinha armado a rede e estava deitado com o fuzil no chão, bem ao alcance de sua mão. Os demais “cabras” também estavam despreocupados, descansando, deitados ou sentados no chão.

Todavia, a alguns quilômetros dali, a volante do tenente Bezerra, um dos “macacos” mais perversos que já perseguiu cangaceiros, desconfiada, fazia tudo para localizar o bando. Não sei quais os artifícios empregados por Bezerra, mas o fato é que ele conseguiu pegar um coiteiro de nome Pedro Cândido. A forma usada para fazer o homem delatar Lampião, não sei, nem creio que interesse...


Pedro de Cândido 

Os soldados de Bezerra deviam ter-se movimentado com grande classe militar, pois o fato é que pegaram todos de surpresa. Lampião dormia no momento em que as metralhadoras começaram a pipocar. Tomados assim de supetão, alguns “cabras” fugiram, mas Lampião nem acordou! É fato que foi encontrado no chão, mas já caiu da rede morto e ensanguentado, com o corpo crivado de balas. Os “cabras” que se levantavam apavorados, mal ficavam de pé, caíam mortos, pois o ataque da volante foi cerrado e organizado.

BRIO DE CANGACEIRO

ASSIM mesmo, houve retribuição de fogo e a refrega ainda durou alguns minutos, embora vários “cabras” fugissem para salvar a pele. Maria Bonita, ao ver Lampião estendido no chão, correu para junto dele e foi ferida na perna. Arrastou-se até Lampião e ficou junto do seu corpo, em pranto. E a fiel companheira de Virgulino ainda falou para Luiz Pedro: 

“Você não disse que morreria com teu compadre? Pois olhe, ele está morto!”

O cangaceiro Luiz Pedro

Luiz Pedro fitou o corpo de Lampião, encheu-se de brios e não bateu em retirada. Pôs-se a atirar contra os soldados. Durou pouco esse seu gesto de solidariedade com o chefe, pois uma bala bem endereçada o atingiu e ele tombou sobre o corpo de Lampião.

Com o chão repleto de cadáveres e alguns “cabras” feridos, a volante avançou. Quem tinha de fugir já estava longe. Os soldados ocuparam o “campo de batalha”, e o “cabra” que ainda estivesse vivo recebia tiro ou facada de misericórdia, tal como faziam os cangaceiros... Maria Bonita assistiu, sentada e ferida na perna, à chegada dos soldados. Ao ver um deles lhe apontar o revólver, falou estoicamente: “Pode matar-me! Lampião morreu e eu não quero mais viver...” Um tiro espocou e ela tombou morta ao lado do homem que tanto amou e pelo qual abandonou um lar decente e tranquilo. Com a morte de Maria Bonita terminava um dos idílios mais sinceros de que já tive notícia: amor que durou enquanto ambos tiveram vida...

O que se passou a seguir, foi o degolamento de todos os cadáveres. Explicou o tenente Bezerra, depois, que ordenou aquilo porque era mais fácil transportar cabeças do que corpos. Num saco caberiam doze cabeças... Tinha razão o tenente. Era o espírito prático e objetivo do nordestino que mais uma vez se manifestava...

EXPOSIÇÃO MACABRA

FOI grande o show com as cabeças dos cangaceiros, que até hoje estão expostas no Museu da Bahia. A chegada da volante a Salvador foi um verdadeiro carnaval, e as cabeças, já em princípio de decomposição, foram colocadas como troféus, na escadaria da chefatura de Polícia. Dava asco ver aquele espetáculo, mas o povo estava curioso e queria ver as cabeças de Lampião e Maria Bonita. Ante a fisionomia alterada da companheira de Virgulino, as mulheres comentavam:

“Como ela era feia!...”

A cabeça de Lampião era a mais impressionante. Ele estava com a fisionomia zangada, de quem morreu com raiva, nem parecendo que fora apreendido dormindo. Mas aquela era a sua fisionomia ultimamente, pois os “cabras” que o seguiram até o fim contavam que cada vez ele estava mais mal-encarado.

Bezerra, o perverso Bezerra, estava feliz e contava a todos a sua façanha. Ele só tratava Lampião de “Cego”, e fartou-se de contar como surpreendeu o bando. Recentemente, porém, deu uma entrevista e contou tudo bem diferente daquela época. Em ambas as ocasiões, esqueceu-se de dizer que, após a degola, deu cabo do coiteiro Pedro de Cândido, conforme é do conhecimento de todos. Nesta sua última entrevista ele disse que eu não prestava e era um cangaceiro sanguinário. Concordo com ele... Mas que lucrei eu? Fiz tudo isso e aqui me encontro, depois de cumprir vinte anos de cadeia, na mais completa miséria, com mulher e quatro filhos, vivendo com salário-mínimo. Ele, Bezerra, não foi menos ruim do que eu, e hoje está rico, é Coronel e dono de várias fazendas...

O mundo como é... Uns fazem maldades, matam e nada lucram, outros também matam, fazem maldades e acabam ricos e considerados.

O ÓDIO DO CORONEL

NESSA entrevista, o coronel Bezerra referiu-se a mim com ódio e indignação. Nem parecia que da minha prisão até hoje haviam passado quase trinta anos. Parecia que tudo acontecera ontem. “Esse sujeito não presta!”, disse o coronel, sem atender que eu só tinha quatorze anos naquela ocasião, nem à forma pela qual me tornei cangaceiro.

Não levou em conta também a cadeia que paguei; minha dívida, já saldada com a sociedade, foi excessivamente cobrada, pois, sendo eu menor, não poderia ficar tanto tempo preso. Não quis, finalmente, o Coronel respeitar sequer a desgraça de quem não tem onde cair morto e precisa sustentar mulher e quatro filhos.

Nada disso, o Coronel quis saber quando me atacou. “Macaco” infeliz! Ignoras por acaso que, se tenho pecados horrendos, tu também os tens? Pensas que só eu irei para o inferno? Que ingenuidade!... 

Depois que o bando de Lampião foi dizimado, o cangaço ainda durou mais uns anos, e Corisco continuou com seu próprio bando, como já disse. Mas, exterminado Corisco, a vontade de organizar cangaços foi arrefecendo, até que terminou por completo.

É verdade que tenho falado pouco de minhas façanhas, mas podem os leitores ficar certos de que não estão perdendo nada. O que havia de mais interessante no bando não eram os meus crimes, pois esses constituem uma nota triste, visto não passarem de façanhas de um garoto pervertido por gente que só conhecia uma lei – o ódio, e um único direito – o de matar!

Material do acervo do pesquisador Antonio Corrêa Sobrinho

CONTINUA...

Fonte: facebook
Página: Antônio Corrêa Sobrinho

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