*Rangel Alves da Costa
O boi geme sob a canga. O ferrão
da vara lhe adentra a pele, fere, machuca, faz sangrar. Mas não adianta o
berro, o gemido, o mugido de dor. O ferrão é insensível, a vara também. O
carreiro não tem olhos para o sofrimento nem para o sangue espargindo a vermelhidão
da crueldade.
O homem também geme sob a canga. O seu algoz o escraviza como ser submisso, um
reles qualquer que nasceu pra sofrer. Por isso dá-lhe de chibata, de ferrão, de
açoite, de lapoada. Ainda o coloca no tronco para completar o serviço.
A estrada é longo, dura, espinhosa, difícil demais de seguir. O carreiro -
carrasco ferrador - sequer quer saber do cansaço e do sofrimento do bicho. Ele
vai em riba do carro, sentado ao redor da carga, protegendo-a. O bicho na canga
que se lasque, que morra.
Também ao carrasco humano, o capataz ou algoz, o executor da crueldade, pouco
importa a ferida que vai abrir na pele, no sentimento ou no coração daquele que
escraviza, que mantem debaixo de canga. Ora, é seu escravo e como tal deverá
padecer ao seu desejo.
Assim, abaixo da canga vai sempre aquele que carrega o peso da submissão, da
escravidão, da sujeição, do servilismo, da humilhação. E tanto bicho como homem
é tratado assim, na covardia do ferro e do fogo, do grilhão e da ponta afiada,
da chibata e do açoite.
Quem merece viver assim? Aos olhos modernos seria o fim do mundo. Ao menos
teoricamente, não mais se admite a escravidão em terras desenvolvidas nem se
comunga com maus-tratos aos animais. Mas nada que tenha desparecido de vez. Há
jugo e cativeiro por todo lugar.
Qual a dor sentida por um bicho-animal ou um bicho-homem debaixo do
aprisionamento da canga? O sofrimento é mudo, ainda que grite. A dor é
escondida, ainda que sangre aos espasmos. E assim por que o algoz jamais quer
saber se ali adiante existe uma pedra ou um coração.
Por isso mesmo que a canga simboliza o trato sempre humilhante. Por isso mesmo
que a canga representa a incoerência, a arrogância, a mais absurda violência,
pois simplesmente impondo o sofrimento. Daí que a canga é a aprisionamento da
força, da alma, de qualquer forma de dignidade.
Há de se observar que a canga acima do pescoço sempre força que a criatura se
mantenha de cabeça baixa. Quando mais abaixada a cabeça mais fácil será de
domá-lo, dominá-lo, feri-lo, açoitá-lo, guiá-lo por onde quiser. Quanta mais
baixa a cabeça mais se perde a força de pensar, de agir, de reagir aos
tormentos que lhe são impingidos.
Sob a canga, o mundo ao redor é somente aquele que está naquela direção ou mais
abaixo. Não há céu, não há horizonte, não há liberdade de se desejar novos
ares. E qualquer tentativa de erguer um pouco mais a cabeça logo será reprimida
com mais ferroadas, com mais atrocidades.
Foi assim que surgiu o cangaço. Não se espante não, pois foi assim mesmo. A
partir de homens tidos, tratados e maltratados, feito bichos e mantidos abaixo
de cangas. Neste sentido é que se diz que o cangaço surgiu do peso da canga,
tornado insuportável demais para ser carregado.
Homens tratados feito bichos, feito escravos, feito reles submissos. Sertanejos
mantidos nas agruras da dor e do sofrimento pelas perseguições da política e do
poder. Nordestinos considerados sem qualquer valia perante os senhores dos
latifúndios, aqueles arrogantes senhores donos do mundo.
E sobre os humildes, porém valentes e encorajados homens, um dia a canga deixou
de ser suportada através do ferrão do poder. Aqueles valentes e decididos
homens não mais aceitaram ser chicoteados, feridos e humilhados, pelas
injustiças da justiça, pelas baratas perseguições, pelos aviltamentos impostos
pelos governantes.
Que situação mais desumana se manter tão nobres e valentes sertanejos sob a
canga. Mas assim se fazia. Ora, o homem da terra era sempre desprotegido em
tudo. Seus direitos eram sempre usurpados pelo poder. Não podia recorrer a ninguém
que lhe resguardasse a mínima dignidade.
O que fez, então? Teve a coragem de tirar tanto peso de suas costas, de se
desfazer das amarras do seu pescoço, de jogar ao longe os grilhões e as
correntes, e se assumir como dono do seu destino. E pegou em arma para mostrar
sua honradez, para dizer que quem com ferro fere com ferro será ferido.
Assim, o cangaço nasceu desses homens desgarrados da canga. Da canga
indignamente mantida na sujeição foi que nasceu o cangaço como forçada e dura
libertação. E se fez cangaceiro todo aquele que ainda levava no lombo o sangue
apenas estancado pelo sofrimento outrora imposto.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
Enviado pelo professor, escritor, pesquisador do cangaço e gonzaguiano José Romero de Araújo Cardoso
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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