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sábado, 7 de setembro de 2019

O CANGAÇO E O MUNDO DO CORTA-CABEÇAS


*Rangel Alves da Costa

Tempos medonhos, sangrentos, aterrorizantes, foram os idos cangaceiros. Tocaias, emboscadas, violentos combates, sangue espalhado nos carrascais sertanejos, gritos de fuga, urros de dor, gemidos de agonia. Como um poema drummondiano ao avesso, cangaceiro matava volante, que matava cangaceiro, que vivia pra não morrer, e todos matando o sertanejo, que muitas vezes nem tinha nada a ver com a história.

Um mundo de terríveis atrocidades e de insanas violências. No rastro do cangaço, nas mesmas veredas percorridas por cangaceiros e soldados, sem as marcas do sangue, do ódio e da violência contra qualquer um. Ninguém estava totalmente protegido em meio aos canos fumacentos das armas, as lâminas afiadas dos punhais e as iras esbravejadas em cuspidas de fogo. Muitos mortos foram simplesmente deixados aos urubus, aos carnicentos das matas. Muitos foram enterrados em cova rasa, e poucos tiveram uma cruz com epitáfio qualquer. “Aqui morreu mais um”, talvez sintetizasse melhor a carnicenta moldura.


Difícil de acreditar, mas apenas pedaços de corpos foram enterrados por falta do restante dos membros. Troncos foram sepultados sem a cabeça, cabeças foram enterradas sem o restante do corpo. Canário, por exemplo, morto à traição em setembro de 38 pelas mãos do também cangaceiro Penedinho, teve apenas seu tronco enterrado nas proximidades de onde tombou sem vida, e sua cabeça enterrada em outro lugar.

E assim aconteceu porque após sua morte, logo que tomou conhecimento do ocorrido, o tenente Zé Rufino, comandante de volante e temido caçador de cangaceiros, rapidamente se dirigiu até a Fazenda Coruripe, no sertão sergipano de Poço Redondo, e passou o punhal no pescoço do morto, decepando a cabeça. E com ela retornou ao seu quartel de comando na baiana Serra Negra, do outro lado da fronteira sergipana. Certamente que o sepultamento da cabeça ocorreu por lá.

Outro que teve a cabeça enterrada sem o restante do corpo foi o cangaceiro Pau Ferro. O ano era 37, o mês era agosto. Um grupo de cangaceiros, dentre os quais Corisco, Mariano, Mané Moreno, Moita Braba, Zé Sereno, Mormaço e Juriti, assenta coito nas beiradas do Riacho das Quiribas, distando nove quilômetros daquela povoação de Poço Redondo. A junção de cangaceiros renomados assim não era pra todo dia, e por isso mesmo resolvem festejar o encontro. Estavam proseando sina e destino quando, sem perceber, foram avistados por um moço chamado Miguel, que por aquelas bandas seguia em direção à casa do sogro.

Seguindo, do alto Miguel avistou a cangaceirama lá embaixo no riacho. Surpreso e assustado, imediatamente retornou e logo cuidou de avisar ao destacamento de polícia local. Passo seguinte, a soldadesca vai em direção ao riacho se certificar da veracidade daquela notícia. Era verdade. Os cangaceiros, em grande número, estavam ali acoitados. O que fazer, então, com um pequeno número de soldados perante aquelas feras em grande quantidade? Enfrentá-los seria certeza de morte, ainda que os cabras das caatingas sequer tivessem percebido suas presenças. Decidiram, por medo, recuar.

Mas no recuo, e quando já se imaginando distanciados demais, eis que fazem algo desastrado. Dois soldados atiram para trás, sem pretensão alguma de acertar qualquer coisa. E uma bala acaba atingindo e matando o cangaceiro Pau Ferro, do subgrupo de Mané Moreno. Arrependidos, Mas já era tarde demais. Apertaram ainda mais a fuga, pois sabiam que a tempestade sangrenta estava a caminho.

Perante o amigo morto, a cangaceirama virou na gota serena, cuspiu fogo e jurou vingança ao inimigo desconhecido. Ora, desconhecido por que não conseguiu alcançar nenhum soldado. E a vingança veio mais tarde, quando um ensandecido Corisco comandou o cerco a Poço Redondo, tocaiando vereda e quintal, até redundar na morte dos soldados Tonho Vicente e Sisi (que não tinha nada a ver com a morte de Pau Ferro), em local hoje conhecido como As Cruzes dos Soldados.

Morto Pau Ferro, enterrado pelos companheiros ali mesmo, no outro dia sua cabeça já vagava pela povoação de Poço Redondo. Mas como pode ter acontecido assim? Certificando-se de que a cangaceirama já havia arribado coito, alguns soldados e pessoas da comunidade foram até o riacho para saber se algum cangaceiro havia sido morto pelos disparos em correria. E lá encontraram a cova fresca de Pau Ferro. Depois de desenterrado, sua cabeça foi cortada por Tonho Bioto e levada até as ruelas poucas de Poço Redondo. E por ali mesmo enterrada.

Mais uma cabeça cangaceira cortada e sepultada sem o resto do corpo. E quantas cabeças do cangaço foram decepadas? Os retratos demonstram os macabros troféus. Cinco, oito, dez cabeças, tomando uma só moldura. Cabeça cortada de Lampião, de Maria Bonita, de um cangaço inteiro. Talvez o restante do corpo não importasse quanto aquelas faces tortas e olhos retorcidos. Deram mais valor à cabeça do que ao restante, e talvez por isso o cangaço continua na cabeça e comendo o juízo de muita gente.


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