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segunda-feira, 22 de junho de 2020

A SANTA BAIANA NO TEMPO DE VOLTA SECA: SANFONEIRA, IRMÃ DULCE QUANDO JOVEM VISITAVA PRESÍDIOS E ATENDEU ATÉ CANGACEIRO DE LAMPIÃO


Arquivado em (Artigos) por vitor

UOL/FOLHA

Iniciativa da religiosa de tocar sanfona para detentos a aproximou do ‘cabra’ conhecido como Volta Seca

João Pedro Pitombo
Salvador

Enquanto Irmã Dulce dava os seus primeiros passos em seu trabalho social nos anos 1930, cangaceiros aterrorizavam cidades do sertão baiano. Eis que em 1939 cruzaram-se os caminhos da freira que se tornará santa da Igreja Católica e do jovem que entrou para a história como um dos mais sanguinários “cabras” do bando de Lampião: Antônio dos Santos, o Volta Seca.

Ele tinha 21 anos, e a freira, 23, quando se encontraram pela primeira vez no presídio Engenho da Conceição, prédio que, nos anos de 1950, ficaria conhecido como a Penitenciária da Coreia. O apelido foi dado pelas condições do presídio, que refletiam o cenário da guerra que assolava o país asiático.

Foi naquela época que, enquanto se dedicava ao Círculo Operário da Bahia, Irmã Dulce decidiu fazer visitas semanais ao presídio para levar conforto espiritual, alimentos e remédios aos detentos.

Ela será canonizada neste domingo (13), em cerimônia chefiada pelo papa Francisco, no Vaticano, após ter dois milagres reconhecidos pela Igreja Católica. Irmã Dulce (1914-1992) será a primeira santa brasileira.

Maria Rita de Sousa Brito Lopes Pontes, aos 18 anos, mais conhecida como Irmã Dulce – Acervo Memorial Irmã Dulce.

“Irmã Dulce caminhava em meio a um hiato social que existia naquela época. Ela atuou em prol das pessoas mais desprotegidas da sociedade”, afirma o jornalista Valber Carvalho, que pesquisa a vida da freira desde 2013 e prepara uma biografia sobre ela.

Para cumprir sua missão de evangelização, a freira ia para a penitenciária com a sua sanfona, instrumento que aprendeu a manejar na juventude, e tocava para os detentos no pátio.

“Ela usava o lúdico como instrumento de regeneração. Buscava resgatar a dignidade dos presos com a música”, diz Osvaldo Gouveia, chefe da Assessoria de Memória e Cultura das Obras Sociais Irmã Dulce.

As modinhas aproximaram Irmã Dulce e Volta Seca, que também gostava de música e chegou a gravar um disco com canções ligadas ao cangaço depois de deixar a cadeia. O LP incluía canções como “Mulher Rendeira” e “Acorda Maria Bonita”.

Nascido em Sergipe em 1918, Volta Seca passou a integrar o bando de Lampião quando tinha apenas 11 anos. Começou lavando e escovando os cavalos dos cangaceiros e ganhou notoriedade ao fazer parte do grupo que participou da chacina de Queimadas, cidade do norte da Bahia.

O massacre aconteceu às vésperas do Natal de 1929, quando Lampião e 15 de seus homens mataram sete policiais que faziam a guarda da cidade e roubaram 22 contos de réis (algo como R$ 550 mil, em valores estimados). Ao fim do saque, Lampião ordenou que fizessem um baile em sua homenagem.

Volta Seca foi capturado e preso em 1932, aos 15 anos, e levado para Salvador. Já era um cangaceiro famoso e foi recebido por cerca 2.000 pessoas na estação ferroviária de Periperi antes de seguir para a penitenciária.

Volta Seca, cangaceiro integrante do bando de Lampião, fotografado em entrevista na penitenciária de Salvador; imagem publicada na revista O Cruzeiro, de 1944 –Reprodução – José Brito/Revista O Cruzeiro.

Em 1944, chegou a fugir da prisão após serrar as grades da cadeia e escapulir por uma fresta entre fios elétricos no muro do presídio. “Em pouco mais de 20 dias, fui a pé da Bahia até Sergipe”, narraria o cangaceiro em entrevista ao jornalista Joel Silveira. 

Condenado a 145 anos de prisão, teve pena posteriormente reduzida para 20 anos. Em 1952, recebeu o indulto do presidente Getúlio Vargas. Nas tentativas de reduzir a pena, Volta Seca diz ter apelado para Irmã Dulce, que teria intercedido por ele junto às autoridades, conforme narrou em entrevista ao Diário da Noite, do Rio de Janeiro.

“Há uma figura nobre que tem olhado esse meu caso. É a Irmã Dulce, freira do Círculo dos Operários. É a santa criatura que constantemente intercede por nós aqui na penitenciária. Prometem a ela, mas nada cumprem. O senhor vê que nem a figura dos santos consegue ajeitar a boa vontade dos homens”, disse.

 Irmã Dulce continuaria sua rotina missionária nos presídios até 1954, quando foi proibida de frequentar a penitenciária da Coreia. O episódio foi registrado pelo jornal “A Tarde”, que criticou a decisão.

“Não seriam por demais fortes os quadros de horror ali desenrolados para que pudessem ser vistos pela jovem e estimada sóror baiana, já acostumada com eles em suas caminhadas dias e noites pelos locais mais desoladores da capital? A razão na proibição não se conhece, mas parece incrível que se prive os presos do conforto da caridade”.

Cinco anos depois, a freira fundaria as Obras Sociais Irmã Dulce, projeto ao qual se dedicou até morrer em 1992.

Já Volta Seca, que morreu em 1997, casou-se, teve filhos, enfrentou dificuldades para conseguir trabalho até conquistar um emprego na estrada de ferro Leopoldina, em Minas Gerais. Deu inúmeras entrevistas sobre sua vida e até atuou como crítico do filme “O Cangaceiro”, de Lima Barreto.

Em seus 20 anos na cadeia, conseguiu juntar oito contos de réis trabalhando na prisão. Ao ser solto, conta o escritor Oleone Coelho Fontes no livro “Lampião na Bahia”, Volta Seca recolheu o dinheiro e fez tal qual faria Irmã Dulce: doou tudo aos pobres.


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