Texto de Março de 2009
A aparência
frágil de quem já viveu 95 anos esconde uma mulher de garra e coragem, que
possui uma memória invejável, capaz de ajudar na reconstrução de parte da
história do cangaço. Natural de Canapi, a alagoana Aristéia Soares de Lima é
uma das sete pessoas ainda vivas que fizeram parte do fenômeno ocorrido no
Nordeste brasileiro no final do século XIX e início do século XX. Vivendo
atualmente no povoado Jardim Cordeiro, localizado no município de Delmiro
Gouveia, ela é um arquivo vivo do cangaço, presença feminina que expõe com
lucidez o papel da mulher dentro do movimento.
Antes de ser entrevistada na casa onde reside, Aristéia entrou no quarto para
se perfumar, hábito provavelmente herdado da época em que foi cangaceira já
que, como ela mesma enfatizou após alguns minutos de conversa, os cangaceiros
usavam um perfume muito bom, como ela nunca viu igual. “Perfume bom era o
daquela época. A pessoa estava acolá e daqui a gente sentia o cheiro. Hoje não
existe mais perfume desse jeito”, disse.
Como conta o historiador João de Souza Lima, vaidade era marca registrada entre
os cangaceiros, que tinham a mulher como um objeto de ornamento. Elas andavam
cobertas de joias, com colares e anéis em ouro, além das roupas feitas de
mescla azul — tecido que era resistente às andanças pelo meio da caatinga. “A
mulher era um enfeite, um símbolo sexual”, diz.
Apesar dessas características marcantes, nem todos as cangaceiras possuíam os
mesmos privilégios. É o que conta Aristéia Soares. “Eu nunca vi nem o ‘azul’ do
ouro. A única coisa que ganhei foi um par de brincos de Cruzeiro”, diz,
explicando em seguida que Cruzeiro era um cangaceiro apaixonado por ela.
Para passar a fazer parte do movimento as mulheres tinham que ser casadas com
algum cangaceiro. Todas elas acompanhavam seus maridos onde quer que eles
fossem, mas não participavam diretamente dos saques e nem dos combates contra
os volantes — que eram os policiais da época e, ao contrário do que muitos
pensam, eram os verdadeiros vilões da história.
Aristéia conta que entrou para o cangaço porque os volantes perseguiam sua
família, batiam no pai, no irmão e nos tios, tendo um deles morrido após ser
espancado pela polícia. “Meu pai apanhou, meu irmão e um tio meu morreu de pisa
porque a polícia achava que a gente era ‘coiteiro’, e ninguém era. Ou corria ou
a polícia matava; foi por isso que eu entrei para o cangaço”, explica.
Ela não chegou a conhecer Lampião e nem Maria Bonita, pois fazia parte do bando
comandado por Moreno, marido de Durvalina Gomes de Sá (Durvinha), mulher de
quem fala com muito carinho e com a qual se reencontrou há dois anos, antes de
ela morrer, no ano passado.
No reencontro, Durvalina e Moreno, por conta da idade já avançada, não
reconheceram Aristéia em um primeiro momento. Somente depois que ela, fazendo
uso da memória invejável que possui aos 95 anos, contou detalhes das aventuras
vividas por eles na caatinga e conseguiu fazer com que o casal - que viveu
junto até a morte de Durvinha — finalmente lembrasse dela.
Aristéia era casada com Cícero Garrincha, cangaceiro conhecido como
Catingueira, única pessoa que diz ter visto morrer após ser baleado pelos
volantes. Em seu último livro, intitulado Moreno e Durvinha — sangue, amor e
fuga no cangaço -, João de Souza Lima conta que o tiro atingiu Catingueira no
tórax, deixando seu coração exposto, a pulsar. Depois de baleado, Catingueira
ainda levantou e foi levado carregado pelos amigos de cangaço por um bom tempo,
até que não resistiu. “Moreno enterrou ele”, lembra Aristéia com tristeza.
A morte do marido representou o fim do cangaço para ela, que decidiu se
entregar à polícia, apesar de ter recebido a proposta de Cruzeiro para que ela
passasse a ser sua esposa e, assim, pudesse continuar suas andanças pela
caatinga com o bando. “Ele queria, mas eu não. Preferi me entregar. Moreno e
Durvalina me aconselharam a sair”, contou.
Na época, Aristéia estava grávida do primeiro filho e deu à luz no município de
Santana do Ipanema, onde ficou presa após se entregar. A criança foi entregue
às tias dela e, depois que cresceu, ganhou o mesmo apelido do pai: Catingueira.
Mesmo se o marido não tivesse sido morto e Aristéia não tivesse se entregado à
polícia, o filho dela seria, obrigatoriamente, deixado com outra pessoa, pois
era assim que acontecia cada vez que uma cangaceira dava à luz.
Aristéia foi presa em abril de 1938 e, em julho do mesmo ano, Lampião e Maria
Bonita foram assassinados, motivo que fez com que o movimento do cangaço
enfraquecesse, chegando ao fim, definitivamente, pouco tempo depois. Ela chegou
a ver as cabeças do casal de cangaceiros mais conhecidos da história do
Nordeste expostas em Santana do Ipanema, enquanto permanecia presa.
Além da sofrida morte do marido, Aristéia também teve que superar a morte da
irmã Eleonora, que era casada com o cangaceiro Serra Branca — líder de um outro
grupo. Ela foi assassinada junto com o marido pelos volantes e teve a cabeça
decepada.
A idade avançada não fez com que Aristéia esquecesse das amizades que fez no
período em que foi cangaceira. Ela lembra com saudade das amigas já mortas
Durvalina, Quitéria, Cristina e Nacinha, destacando que todas elas eram muito
bonitas e lembrando que nunca conheceu Maria Bonita. “Durvalina era muito
bonita e boa. As outras eram também graciosas, mas Maria Bonita eu nunca conheci
não”, diz. Quando questionada se sente saudade da época do cangaço, Aristéia é
rápida ao responder: “Deus me livre”. Para ela, assim como para outras pessoas,
o cangaço era uma opção, um estilo de vida.
“As pessoas entravam para o cangaço pelas mais variadas razões. Uns queriam se
vingar de alguém, outros queriam ter uma vida melhor com os saques, alguns
queriam matar a fome e outros queriam fugir da perseguição da polícia, que, na
verdade, era quem matava e estuprava. Algumas mulheres entraram para o cangaço
porque achavam o estilo de vida dos cangaceiros bonito, outras foram raptadas e
trocadas por ouro, como é o caso da cangaceira Dadá, que só se apaixonou pelo
marido Corisco tempos depois, e morreu, em 1994, ainda apaixonada por ele,
mesmo estando casada com outro”, conta João de Souza, que há 12 anos se dedica
a estudar o cangaço.
Ele foi o responsável por dar vida novamente às histórias que estavam guardadas
a sete chaves na memória das pessoas hoje quase centenárias, sendo o
responsável pela descoberta da alagoana Aristéia — que até então ocultava essa
parte de sua história. “Daqui a dez anos essas memórias estarão perdidas, temos
que resgatá-las enquanto ainda é tempo”, afirma.
João fala da dificuldade para fazer com que os ex-cangaceiros — sejam eles
homens ou mulheres — falem sobre a época vivida na caatinga do Nordeste. É como
se o medo da polícia ainda prevalecesse. Aristéia não confessa o medo, mas
afirma que até hoje não gosta de falar no assunto. “Não gosto de falar, mas é o
jeito. Antes eu não contava porque ninguém me perguntava”, disfarça, sem ter
muita noção da importância do seu depoimento para compor a história do Nordeste
brasileiro.
Hoje, mais de 70 anos depois do fim do cangaço, Aristéia leva uma vida normal,
cercada pelo carinho do filho Pedro Soares, da nora Damares Rodrigues, dos seis
netos e dos cinco bisnetos que moram com ela.
Aristéia fala com entusiasmo sobre duas viagens de avião que fez em 2007 e
2008, como se as suas aventuras mais recentes fossem, de fato, as melhores de sua
vida. “Um dia eu tava na roça com minha amiga e vi uns urubus voando, aí falei
pra ela que um dia eu ia voar também. Minha amiga ficou ‘mangando deu’. Queria
que ela estivesse viva pra eu mostrar a ela que consegui voar. É bom demais.
Você não sabe se o avião tá parado ou tá voando. Gostei demais”, conta
sorrindo.
Muitos anos depois de fazer parte de fatos que marcaram a história do Nordeste
brasileiro, hoje, Aristéia passa seus dias em casa, junto à família. O que ela
mais gosta de fazer? Ir à missa ou assisti-la na televisão. “Eu assisto à missa
todos os dias, de manhã e à noite. Eu adoro”, diz.
Evento lembra centenário de Maria Bonita
Na semana passada, um evento ocorrido na Universidade do Estado da Bahia
(Uneb), em Paulo Afonso, lembrou o centenário de Maria Bonita, primeira mulher
a entrar para o cangaço. Coincidência ou não, a mulher conhecida como a “Rainha
do Cangaço” faria 100 anos no dia 8 de março — data conhecida como o Dia
Internacional da Mulher.
O historiador João de Souza expôs na universidade todo o material que conseguiu
colher ao longo de 12 anos de pesquisa. Em meio às fotos, vestimentas e
mosquetões, um objeto merecia atenção especial: um punhal que pertenceu à Maria
Bonita. “Uma vez ela foi baleada perto de Garanhuns (PE) e Lampião pagou a um
homem para carregá-la ferida. No meio do caminho, ela deixou cair o punhal, que
foi encontrado pelo mesmo homem que a carregou e a deixou no local indicado por
Lampião ao voltar pelo mesmo caminho”, contou.
O 1º Seminário Internacional “O Centenário de Maria Bonita — a Rainha do
Cangaço -, além da mostra cultural sobre o cangaço, contou com palestras, peça
teatral, exibição de filmes, lançamento de livro e diversas palestras. Entre as
presenças ilustres, o evento — encerrado na última sexta-feira — contou com
participação da ex-cangaceira alagoana Aristéia Soares de Lima, 95 anos.
Todo o material exposto na Uneb será doado pelo historiador a um museu que
contará parte da história do cangaço no Nordeste e que ficará localizado no
município baiano de Paulo Afonso.
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