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sexta-feira, 29 de novembro de 2024

EAU DE VICHY

Tomislav R. Femenick – Jornalista

No final do século XIX e início do século passado, as fronteiras dos estados brasileiros ainda eram fluídas e indefinidas. Esse fato era relevante em muitos pontos do país, porém um dos lugares em que isso mais se destacava era na linha divisória entre o Rio Grande do Norte e o Ceará. A contenda se iniciou pela região salineira e logo chegou à chapada do Apodi. Somente para se ter uma ideia da importância da disputa, o grande jurista Rui Barbosa, a Águia de Haia, foi o defensor do nosso Estado. Vencemos.

Nesse cenário houve um outro litigio – esse não declarado. Tratava-se da conquista comercial de toda a região. Os cearenses tinham, principalmente, o porto de Aracati e suas salinas. Nós tínhamos o porto de Areia Branca, as salinas da foz do Rio Mossoró, algodão, couros e peles de animais de todo o oeste potiguar, além de uma incipiente exportação de gipsita (gesso), que faziam o porto de Areia Branca ser o sétimo maior porto brasileiro. No rastro da movimentação portuária, se desenvolveu um comércio importador de produtos elaborados pela incipiente indústria nacional e também importados.

Em Mossoró, três grandes “casas de comércio” dominavam a exportação de produtos nativos e a importação de mercadorias de que a região necessitava: a Casa Mota (de meu bisavô, o Cel. Vicente Ferreira da Mota) e as casas pertencentes a Delfino Freire e ao Capitão Zeta (Manoel Tavares Cavalcante), que abasteciam os vales dos rios Assú, Mossoró e (parte) Jaguaribe. Tragadas pelas incertezas da debacle 1929, pela crise gerada invasão de empresas de Recife, Fortaleza e Natal e pela segunda guerra mundial, as casas de comercio mossoroenses fecharam suas portas. A última foi a Casa Mota, que permaneceu até a morte do Cel. Mota.

Somente o chalé de Delfino Freire, o prédio de sua residência, sobreviveu ao esplendor daquela época. Localizado na Praça da Catedral e com arquitetura francesa, mesmo fechado ele se destaca entre as outras edificações.

Um dia, no início dos anos cinquenta, meu avô (José Rodrigues de Lima, que vivia construindo casas para alugar), me chamou para ir ver o chalé, que ia ser leiloado. Ele não queria o prédio; queria o material de construção que estavam ali armazenados: material elétrico e encanamentos ingleses, ladrilhos franceses, portas de jacarandá e uma escada em caracol. Quando passávamos por essa escada, vimos que em baixo delas haviam algumas caixas de madeira. Curioso como sempre, abri uma delas. Eram apenas garrafas secas de água mineral; porém francesa. Li o rótulo de uma delas: “Eau de Vichy. Magnésienne en plus”. Meu avô comprou o material de construção que lhe interessava e nós voltamos para casa.

O tempo passou e eu não me lembrava mais desse pequeno acontecimento, ocorrido durante um passeio com meu avô. Até que, em meados dos anos 1970, estávamos eu, minha esposa Goreth e meu amigo Lafayete Pondo, professor da Universidade de Lyon, viajando de carro pela França quando paramos na pequena e bela de cidade de Vichy, para almoçar. Imediatamente veio-me à lembrança aquelas garrafas de água mineral importadas pela família de Delfino Freire. Comentei sobre o fato com minha mulher e, sem pestanejar, pedi uma garrafa de água de Vichy e acentuei: ‘Magnésienne en plus’. Meus Deus do Céu. Pense numa coisa ruim. O gosto era uma mistura de Emulsão de Scott, Óleo de Rícino e leite podre. Sem me conter, joguei tudo fora, ali mesmo na calçada do restaurante. Foi o maior perrengue; todo mundo olhando para mim. Fui salvo pela improvisação da minha mulher; pôs a mão na minha testa e fingiu que estava tomando a minha pulsação.

Hoje em dia a Água de Vichy é vendida como produto de toucador; isso é, está catalogado como produto de beleza e de higiene pessoal, indicada para hidratar a pele do rosto e de outras partes do copo e pode custar até R$ 200,00.

Relendo a crônica, notei a grande capacidade do celebro humano. Sai das lutas pela fronteira do Estado, fui bater na França e terminei falando em produtos de toucador.

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