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sexta-feira, 29 de novembro de 2024

RÉQUIEM PARA LAMPIÃO.

 Bastidores de um dos melhores documentários sobre o Rei do Cangaço


Cineasta Maurice Capovilla
Uma medida da liberdade que tínhamos no Globo Repórter foi a experiência de mistura de linguagens proposta, em 1975, por O último dia de Lampião. O projeto, que considero um dos meus melhores trabalhos para a TV, partiu de uma vasta, mas dispersiva pesquisa de Amaury Araújo sobre o fenômeno do cangaço.

O que mais me interessou foi a indicação de testemunhas ainda vivas dos dias finais de Lampião no esconderijo de Angicos, em Sergipe, onde parte do bando foi dizimado. Não se tratava de ouvir dizer, mas de encontrar remanescentes capazes de falar diretamente para a câmera.

Escolhido o episódio da morte do mito, ocorreu-me a ideia de não apenas fazer um documentário baseado na pesquisa e nos depoimentos, mas usar tudo isso como base para uma dramatização dos conflitos daquele dia fatídico. Ainda em São Paulo, encontrei Zé Sereno e sua mulher, Sila. Zé Sereno era o segundo ou terceiro homem na hierarquia do bando, detentor da inteira confiança de Lampião. Entrevistei-o no leito de um hospital. Sila, que era a costureira do bando e havia convivido intimamente com Maria Bonita, não só deu testemunho como também foi contratada para fazer os figurinos do filme. Sila mandou um bilhete para Dadá, a companheira de Corisco, na Bahia, pedindo que ela nos ajudasse com os chapéus, alpercatas e apetrechos de couro, sua especialidade.

Sila
Zé Sereno
A reconstituição deveria ser o mais fiel possível aos acontecimentos. Cruzamos depoimentos para confirmar cada informação. Não apenas entre os cangaceiros, mas até do lado da volante. O único dado assumidamente imaginário é a hesitação do Tenente João Bezerra da Silva, chefe da volante, em matar Lampião.

Eu não tinha depoimento direto a respeito disso, apesar de a pesquisa do Amaury apontá-lo como o coiteiro-mor, vendedor de armas para o próprio Lampião. E ainda havia uma estranha coincidência: ambos teriam nascido no mesmo dia e na mesma hora. Aquela perseguição tinha algo de romanesco – parecia escrita, em vez de acontecida. Com Fernando Peixoto, fui criando o roteiro da reconstituição segundo um cronograma, hora a hora, dos dados reais que apurávamos nas entrevistas.

"Mané" Felix
Procuramos nossos personagens em Salvador (BA), Piranhas, Delmiro Gouveia (sudoeste de Alagoas) e finalmente na região de Angicos, onde concentraríamos as filmagens. Encontramos diversos ex-cangaceiros que foram testemunhas oculares, assim como coiteiros que ajudaram Lampião. Falamos com o telegrafista responsável pela mensagem decisiva da caçada final, com o comerciante que desconfiou da emboscada, com os dois barqueiros transportadores da volante até Piranhas, com o soldado que desfechou o primeiro tiro em Angicos e o que atirou em Maria Bonita. Localizamos o vaqueiro Joca Bernardo, responsável pela denúncia do paradeiro do bando. Ele confessou pela primeira vez a traição, diante da câmera de Walter Carvalho.

Joca Bernardo
Esse Walter Carvalho não é o mesmo fotógrafo dos filmes de Walter Salles e co-diretor de Cazuza – o tempo não pára, mas Walter Carvalho Corrêa, sócio da Blimp e cria de Chick Fowle, o mago das luzes da Vera Cruz. Walter não fez muitos longas, ficou mais na publicidade e nos documentários, mas é um dos grandes fotógrafos brasileiros. Seu trabalho com a câmera na mão pelo terreno pedregoso de Angicos é de excelente qualidade. Angicos é um pedaço de riacho seco que deságua no São Francisco. Lugar inóspito, situado a três horas de caminhada da margem do rio, por dentro da mata. Levamos para lá alguns personagens reais, com o propósito de que indicassem os locais onde tudo aconteceu. Em seguida, rodamos as cenas com os atores.

O telegrafista que comunicou a presença de Lampião.
Os mesmos figurantes faziam cangaceiros e soldados. Para reconstituir o tiroteio, filmávamos o ponto de vista da volante às cinco horas da manhã e o contracampo dos cangaceiros ao cair da tarde. Durante uma semana, dormíamos não mais que três horas por noite, depois de desmontar o equipamento e retornar até nossa base em Piranhas.

Para o elenco, privilegiamos a semelhança física. Emanuel Cavalcanti era o ator perfeito para o papel de Zé Sereno. Bezerra foi interpretado com convicção por um capitão da PM que era primo do personagem real. Heládio Brito, meu ator-talismã nessa época, fez o sargento Aniceto. Lampião, o próprio, não recebeu maior destaque por ser um mito difícil de representar.

Tive receio de pôr em sua boca palavras que comprometessem a plausibilidade. Preferi mostrá-lo sempre de longe, de costas ou de banda, deixando um distanciamento proposital. Achei que isso ajudava na proposta documental do filme. A reunião de relatos e confissões permitiu-nos compreender e mostrar algumas motivações ocultas da opção pelo cangaço. Havia casos de vingança pessoal, ressentimentos e interesses diversos alimentando tanto o grupo de Lampião, como os macacos. Um dos soldados, por exemplo,era parente de sangue de José de Neném, o primeiro marido de Maria Bonita, e certamente estava na volante não somente por mero profissionalismo, mas até em busca de vendeta.

Durval Rosa
A estrutura de narrativas convergentes (cangaceiros X volante) é ainda bem clássica. A narração hoje me parece excessiva, embora então julgássemos necessária para garantir a atenção do telespectador. Mas a combinação de documentário e ficção era bastante nova para a televisão da época. No Globo Repórter, que eu saiba, nenhum programa havia incorporado performance de atores naquela extensão. O tratamento sonoro tampouco era dos mais convencionais.

Ex soldado Abdon
A sequência do clímax, por exemplo, foi filmada a 40 quadros por segundo, para dar maior dramaticidade, e deixamos o som direto distorcido na mesma medida, criando um efeito perturbador. A reza matinal dos cangaceiros, que acaba atuando como elemento de suspense, não foi invenção nossa, correspondia, no entanto, a um hábito diário do bando de Lampião.

Ancorar a reconstituição histórica em dados comprovados não deve ser uma limitação para o cineasta.

Muito pelo contrário, é o que lhe garante a liberdade de experimentar sem o risco de trair seu objeto. Reconstituir, por exemplo, o momento da morte solitária de Getúlio Vargas seria um despropósito. Ninguém sabe sequer como ele empunhou o revólver. Nesses casos, é melhor partir para a dramatização livre, sem qualquer apoio documental. Não aconselho ninguém a reconstituir a devoração do Bispo Sardinha pelos índios caetés...

• O último dia de Lampião (16 mm, Cor, 48 min)
Direção: Maurice Capovilla - Produção: Blimp Film para o Globo Repórter - Supervisão: Carlos Augusto de Oliveira - Roteiro e texto: Capovilla, Fernando Peixoto - Fotografia: Walter Carvalho Corrêa - Montagem: Laércio Silva - Som: Mario Masetti - Produção executiva: Quindó - Pesquisa: Amaury C. Araújo, C. Alberto R. Salles - Guarda roupa: Sila e Dadá - Música: Zé Ferreira, Oliveira Francisco - Narração: Sergio Chapelin - Elenco: Emmanuel Cavalcanti (Sereno), Salma Buzzar (Sila), Eduardo Montagnari (Lampião), Edileuza Conceição (Maria Bonita), Heládio Brito (Aniceto), Luiz Bezerra (Bezerra), Otávio Salles

1ª Fotografia - Acervo pessoal de Maurice Capovilla
Demais imagens do documentário foram inseridas por nós, para ilustrar o artigo.


Capítulo do livro Maurice Capovilla, A imagem crítica.
Autor Carlos Alberto Mattos.
São Paulo, 2006.
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo
Coleção Aplauso Cinema Brasil

Pescado eAplauso






























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