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quinta-feira, 18 de abril de 2013

A Questão de 8 Parte I

Por: José Cícero

Uma promessa: Ou o milagre de uma reza forte..

Meados de 1908. Aurora começava a vivenciar uma das fases mais negras e tenebrosas da sua história. Ano funesto que marcaria profundamente a memória de todos quantos sentiram na própria pele aqueles acontecimentos marcados pelo absurdo, brutalidade e ignorância. Invasão e saque. Apenas isso? Não. Fatos vergonhosos e lamentáveis que como feridas incuráveis até hoje, mesmo depois 103 anos, ainda repercutem aqui acolá como uma enorme cicatriz aberta de uma história ainda não completamente bem contada. O próprio passado como que querendo a todo custo (ainda que tardio) acertar suas contas com o presente.

Ocorrências que, malgrado todo o peso da sua importância até hoje não foram devidamente escritas com a pena lúcida e coerente da verdade. Constituindo desse modo, um grande desafio aos estudiosos e historiadores devidamente comprometidos com a real veracidades dos fatos. Dentre tantos os acontecimentos ainda não efetivamente descritos na história de Aurora, um em especial, me fora narrado pelo senhor Vicente Jerônimo da Silva. Ex-tabelião do não menos antigo e pioneiro cartório Quezado.

Com base neste fidedigno relato, resolvi concatenar tais informações numa pequena narrativa que ora se segue enfeixada no bojo da série: ‘História que ouvi contar’ em cujo mesmo se incluem como desdobramentos: o fogo do Taveira, a discutível demarcação das minas do Coxá, além da célebre invasão por jagunços que ficara conhecida como ‘a questão de oito’. Tudo isso na ânsia de fazer com que estes fragmentos históricos não venham a ser definitivamente esquecidos pelas gerações, do presente e do futuro e, tampouco perdidos nas brumas do tempo como tem sido comum diante de uma história escrita, quase sempre, segundo ótica dos poderosos e dos vencedores. Em última instância, uma iniciativa de puro resgate e preservação da verdadeira história do povo aurorense e, em especial, a dos oprimidos.

José Cícero

1908 - O Começo de tudo...

1908 – Um ano quase cabalar de uma década que poderíamos muito bem chamá-la de perdida. Principalmente para os que a viveram a ferro e fogo. E a duras penas, conseguiram sobreviver a tudo o que ela teve de mais trágico e inusitado. Um tempo que duraria uma verdadeira eternidade por conta dos crimes e outras atrocidades que se abateram como uma praga terrível que se abateu sobre uma gente humilde e ordeiraacostumando demais à lida penosa de uma vida inteira dedicada à agricultura de subsistência, o comércio agropastoril, assim como a produção dos engenhos de rapadura e aguardente. Em especial, a produção de milho, algodão, oiticica, farinha de mandióca e o criatório.

No meio de tudo isso as disputas políticas das mais raivosas, que para não fugir à regra regionalista no mais das vezes, eram decididas na base da bala. Monopolizadas que eram(quase sempre) por duas ou três ramificações familiares que se alternavam no poder conforme a força que conseguiam concentrar(a cada instante) e assim, fortaleciam seu poder de barganha junto às hostes políticas da região e da capital. Eis aqui, em rápidas pinceladas, o cenário objetivo do que era ou do que foi aquela Aurora antiga e provinciana, escondida do mundo num entreposto naturalmente fincado na porta do Cariri a meio caminho do Juazeiro e Crato e do Icó a Fortaleza. Auge da velha estrada dos almocreves margeando o então caudaloso rio Salgado que por quase dois séculos serviu à ligação do interior com o litoral (Fortaleza, Aracati e Mossoró). Fazendo assim de Aurora, como dissera certa feita o velho Serra Azul: “oásis, rancho e tenda” para os tropeiros viajantes nas suas andanças intermináveis. Verdadeiro caminho da própria colonização do Cariri adentro.

Aurora mais do que qualquer outra cidade da região sofreu em demasia diante da pilhagem e da truculência que sofreu, maldades promovidas muitas vezes pelos que tinham justamente o mister e a obrigação de defendê-la. Era uma vila das mais prósperas de toda a região. Pagou-se assim, o mais alto preço naquela guerra de facínoras contra os humildes e miseráveis – os filhos da pobreza. Razão pela qual completara o poeta do riacho do Pau Branco de que a história de Aurora era de fato, “trágica e tremenda”. E quanto à questão de oito não foi lá muito diferente. Neste episódio em particular, alguns ricos da época também tiveram que arcar com seu quinhão de sacrifício. Foram roubados e humilhados. E caso não fugissem teriam decerto, que pagar com a própria vida... O próprio vate salgadiano tivera que forçosamente se abrigar em Quixadá e de lá derivou definitivamente para Fortaleza.


Uma saga histórica onde se misturaram bandidos, vassalos, heróis e inocentes. O futuro nunca foi tão inacreditável para um povo, como naquele fatídico ano de 8. Uma gente que mesmo em meio as agruras e o sofrimento, devotou a sua própria vida em nome de uma causa nobre: a única que lhe parecia possível – a sobrevivência. Momento difícil de injustiças, crimes deploráveis, superação e heroísmo dos que por sorte, conseguiram sobreviver para contar ao futuro o que de fato aconteceu naqueles tempos tenebrosos de infâmia sem tamanho.

Mas vamos ao que me descreveu o velho Jerônimo – um exímio contador de causos, cuja memória é quase uma enciclopédia de tão lúcida, rica e fértil. Suas histórias e estórias são tão bem contadas, ao ponto de nos dar a nítida e fantástica sensação de estarmos dentro delas. Vivenciando-as assim nos seus mínimos detalhes. Verdadeira viagem ao passado. Um longo mergulho no túnel do tempo. O tal contador de causos fantásticos empreende tanta ênfase as suas narrativas que às vezes imaginamos ser ele, o próprio protagonista de cada fato e historieta narradas sob o mais autêntico dos entusiasmos – a emoção. Um grande serviço que, sem sombra de dúvidas, se presta como verdade a nossa própria história. Este seria, por assim dizer, o maior e mais duradouro de todos os seus créditos como memorialista: a verdade.

Aurora no tempo do Império do Bacamarte

Como se deu toda a história: Uma viagem...

Uma antemanhã de sábado. De um tempo distante e remoto lá pras bandas de 1908. Começo do mês de dezembro. Aurora ainda era uma vila. Um calmo lugarejo marcado pela tranquilidade de uma paz bucólica quase cinematográfica e que tinha tudo para ser duradoura. Um povoado esmaecido no âmbar dos dias calmos e morosos com suas horas mortas. Tal como se a própria vida durasse uma eternidade...

Uma época em que a pressa de viver não fazia nenhum sentido prático, notadamente para todos os que experimentavam tranquilamente a lida cotidiana daquele rincão estendido no oco do mundo, quase como um autêntico lenitivo. Uma madrugada diferente. Era muito cedo e fazia frio. O sol ainda não apontara no horizonte por sobre a serra da Várzea Grande. A sensação era do mais completo vazio expresso num quadro imenso do silêncio. Plena escuridão e quietude. O próprio mundo às escuras, parecia no mais completo vazio absoluto.

A barra do nascente ainda estava escura e um frio intenso parecia cobrir os ares daquela Aurora antiga e paroquial. Pouquíssimas casas, na sua maioria esparsa na primitiva geografia daquela vila, um tanto desajeitada, com destaque apenas para o quadro da matriz onde moravam os mais abastados. Os chamados coronéis, ricos e os remediados da época. Do outro lado, pras bandas do mercado as casas de comércio mais destacadas do major Sebastião Alves Pereira e do coronel Paulo Gonçalves Ferreira.

E naquela madrugada preguiçosa, belas lamparinas iluminavam o velho sobrado construído nos idos de 1800 pelo coronel Xavier então residência dos Gonçalves. Era de cara, a mais imponente das poucas residências daquele tempo. E, que por sinal ainda se encontra de pé até hoje. O silêncio das poucas ruas de chão batido aos poucos começava a ser rompido pelo som que vinha de longe – cantos de galos (muitos galos) em verdadeiro couro enchiam a madrugada de sonoridade, assim como o coaxar de sapos, bem como o tradicional barulho de cambiteiros, a iniciar a lida do eito dos engenhos de cana que rodeavam o quadrilátero daquela vilazinha bucólica prostrada à margem do Salgado. O rio buscando com suas águas, também fazer sua viagem infinita sempre nos rumos do Jaguaribe.

O sol parecia naquele princípio de dia não estar com pressa para nascer e iluminar o mundo. Pura preguiça em tudo. As águas límpidas e claras do rio Salgado corriam em disparadas para o Icó em sua absoluta sofreguidão, arrebatando moitas e ribanceiras em todo o seu trajeto. Vinham rompendo tudo a sua frente desde as cabeceiras da nascente situada longe no sopé da serra da Batateira. Mas o espelho d’água, assim como as pessoas, pouco mais de mil almas(na época), não ais que isso também aguardavam os primeiros raios do sol matutino daquela Aurora distante e sonolenta de uma estranha madrugada de sábado.

Na rua grande e no quadro, ambos de chão batido adornados por grandes moitas de capim de burro onde ficavam os casarões dos coronéis, uma comitiva familiar se preparava para uma viagem. Era o clã dos Quezados e dos Gonçalves – duas das mais importantes e influentes cepas familiares de Aurora, assim como de todo o Cariri Oriental, e que naquela madrugada viajaria até o povoado de Joaseiro. Quem sabe, buscando a proteção segura do padre Cícero Romão Batista. Uma tentativa de se evitar aquele projeto de assalto e insídia a pequena urbe, talvez. Um presságio? Quem sabe? Antes do pior deixariam a cidade em favor da própria segurança familiar.

Continua...

José Cícero - Poeta, pesquisador e escritor
Conselheiro Cariri Cangaço

http://cariricangaco.blogspot.com.br



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