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domingo, 5 de janeiro de 2014

Bangu, Memória de um Militante - Lauro Reginaldo da Rocha - Bangu - Parte XIV

Por Brasília Carlos Ferreira – Organizadora, 1992
Lauro Reginaldo da Rocha era mossoroense

“A SOLITÁRIA”

Mais de um ano passamos no inferno da Política Central, num ambiente de torturas, vilania, gritos, choros, insegurança, desespero, pressões, ameaças, crueldades, pavor, morte, suicídio. Toda essa avalanche de agonia e sofrimento que desabou sobre nós e nossa gente e que procuramos palavras para exprimir e não encontramos tudo que dizemos parece sem sentido, confuso e distante da realidade.

Entretanto repentinamente a situação lá fora começou a mudar o rumo da ditadura. Os navios da marinha mercante brasileira começaram a ser torpedeados pelos submarinos alemães, sob o pretexto de que transportavam mantimentos para os aliados. O povo, em grandes manifestações de rua, exigia que o Brasil participasse da guerra ao lado das Nações Unidas.

Sob pressão interna e externa, o governo de Getúlio Vargas teve que se definir e a guerra contra o eixo acabou sendo declarada. A ilha de Fernando de Noronha – ponto estratégico avançado no Atlântico – teve que ser evacuada às pressas. Os presos políticos que lá estavam, na sua maioria militares da Revolução de 35, foram trazidos para o Rio e alojados na Casa de Correção. Em seguida também fomos transferidos para lá.

Desta forma, em decorrência da guerra e das grandes transformações que se operava na vida dos povos de todo o mundo, a máquina da repressão no Brasil começou a perder o seu ímpeto, como se uma mão invisível tentasse travar as suas engrenagens. Estava findo o período tenebroso para os presos que estavam na Polícia Central.

A mim e ao Matias estava reservada mais uma surpresa. Em vez de nos colocarem juntos com os demais presos políticos, nos puseram isolados numa solitária, sem qualquer justificativa, em frente ao cubículo em que estava Ari Berger. Este companheiro ficou louco pelas torturas que sofreu e pela morte de sua esposa. Ela e Olga Benário Prestes, foram entregues aos carrascos de Hitler pela polícia de Felinto Müller. Ambas foram assassinadas nos campos de concentração da Alemanha nazista.

Ari Berger passava dias e noites gritando, ficamos impossibilitados de dormir durante muito tempo, até que aos poucos fomos nos acostumando. O cárcere onde estava Berger não podia ser comparado a nenhuma jaula. A jaula do animal mais feroz permite o contato visual entre a fera e o mundo exterior. No antro em que estava Berger, nem isto era possível.

Tratava-se de um cômodo com apenas um vão alto, com grade de ferro que não permitia ver seu interior, mesmo de longe. Havia uma área ao lado, cercada por muros elevados, intransponíveis, com um portão de ferro, única entrada para os guardas. Embora nossa solitária ficasse bem em frente e nos banhos de sol pudéssemos, às vezes, chegar até o pé do paredão, jamais pudemos ver sequer a sua sombra. Podíamos acompanhar seus passos pelos ruídos. Mas vê-lo, nunca!

Durante todo o tempo que estivemos na solitária ou seja, durante muitos meses, nunca vimos entrar na prisão de Berger nenhum médico ou enfermeiro. Somente os guardas e faxineiros entravam lá, uma vez por outra, para limpeza. Quando terminou a guerra, em 1945, Berger foi anistiado, junto com todos os presos políticos e seguiu para a Alemanha Oriental. Lá foi submetido a longo tratamento de saúde. Depois soubemos de sua morte.

Do outro lado, por trás de nossa cela, ficava o pavilhão onde estavam alojados os demais companheiros. Nas horas de recreio eles jogavam futebol e sua algazarra chegava aos nossos ouvidos, nós ficávamos um pouco mais animados. Mas depois que eles silenciavam, a nossa solidão voltava mais depressiva.

Havia uma promessa de que nossa isolamento injustificável iria terminar, que breve seríamos colocados juntos aos demais companheiros mas o tempo corria e nada acontecia.

Os dias de visita constituíam uma pausa na monotonia das nossas vidas de isolamento na solitária. Nessa época eu não tinha visitas, minha família continuava no norte. Mas ficava contente só em ver a alegria do Matias, quando vinha alguém visitá-lo, de São Paulo, onde estavam morando sua companheira e sua filha.

Num desses dias como sempre, ele preparou-se, feliz, na expectativa desse encontro reanimador. A visita não veio mas veio uma carta. Uma carta não é o mesmo que uma visita, mas sempre trás notícias, palavras de carinho e de alento.

Ele abriu o envelope com sofreguidão, tirou o papel e começou a ler. Sua fisionomia foi se transtornando, ele foi ficando pálido e trêmulo, pensei que ia desmaiar. Na expectativa de mais uma desgraça, perguntei ansioso, o que tinha acontecido. Ele não disse uma palavra. Entregou-me a carta e caiu no pranto. A carta dizia que a sua esposa tinha se suicidado. Fora encontrada morta no banheiro. Que mais posso escrever neste capítulo? Qualquer coisa que eu acrescente me parece inútil.

O fim do nosso isolamento na solitária chegou, afinal. Fomos transferidos para o pavilhão em que estavam os outros companheiros e recebidos com o regozijo comum entre velhos amigos nessas ocasiões. Agora podíamos praticar esportes, ler, estudar, conversar, ter informações mais amplas do que se passava por esse mundo afora. E toda essa terapia seria utilizada por nós, avidamente, para restaurar o físico e a mente, abalados pelas torturas e pelo longo período de isolamento. Aconteceu nessa época um caso curioso, que não podemos deixar de registrar: Depois de nossa vinda para a Casa de Correção, trouxeram também os “quintas colunas – espiões nazistas apanhados em flagrante, quando indicavam, por meio de estações de rádio clandestinas, o roteiro dos navios mercantes brasileiros para que os submarinos alemães levassem-nos a pique, matando milhares de compatriotas e causando grandes prejuízos à nação.

Esses espiões e sabotadores nazistas ocupavam uma ala de um pavilhão, com o maior conforto. Cheios de dinheiro conseguiam móveis, geladeiras, rádios e tudo mais que desejassem. Pareciam verdadeiros marajás. A cozinha do presídio lhes servia, com horário especial, no refeitório, uma comida de superior qualidade, verdadeiros banquetes, comparada com a boia chinfrim que era servida aos presos políticos brasileiros, nacionalistas, comunistas e os próprios guardas.

A disparidade era tão chocante, que foi tirada uma comissão para ir falar com o diretor do presídio e pedir que pelo menos, nos fosse servida uma comida igual a que era servida aos “quinta colunas”. O nosso pedido foi imediatamente atendido e passamos a ter um tipo de refeição que eles chamavam de “dieta” e que muitos dos nossos jamais tiveram, mesmo quando estavam lá fora.


CONTINUA...

http://www.dhnet.org.br/memoria/1935/livros/bangu/04.htm#primeiro
http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Um comentário:

  1. Sim,nobre professor José Mendes,Basto é Camboa pelo lado materno.Avó dele,Julia Nogueira,é irmã de meu pai.No livro das dez gerações da família Camboa folas 41-44 pop 2,Lauro da Escossia sita:Miguel Nogueira de Lucena viveu por longo tempo no Sitio Trapiá onde formou família.Basto é descendente dele.

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