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terça-feira, 12 de agosto de 2014

LAMPEÃO

Por João Rabelo

Sentando-se numa pedra colocada entre as redes dos dois interlocutores, Joramor indaga:

- Alguém dos senhores conhece, de vista, Lampeão?

- Passou diversas vezes na nossa propriedade, fugindo dos “macacos”.

- Dizem ser ele malvado, enquanto outros afirmam tratar-se de um sujeito temente a Deus, caridoso, que tira do rico e dá aos pobres.

Olhando em seu derredor, Joaquim, um dos interlocutores, voltou-se para o companheiro, na outra rede, e disse:

- Conte você, Zé, que tem mais jeito do que eu para estas histórias, é lido e corrido.

José Pequeno, meio desconfiado, como demonstrou o companheiro, perguntou:

- O senhor não é o que trabalha com o engenheiro?

- Sou.

-Quer dizer que não é daqui e por isso não conhece a vida de Lampeão e dos seus bandos?

-Realmente. Sou de fora e muito me interessa ouvir a respeito de tão discutido homem.

- A primeira vez que vi Lampeão foi quando ele atravessou o Rio São Francisco, passando para o lado de cá. A minha propriedade fica na beira da estrada que vai do Carira a Cipó de Leite. Eu faço feira no Carira e duas ou mais vezes por semana vou à Rua (cidade) comprar querosene, chumbo e pólvora para minha espingarda, ou mesmo para beber uma pinga com os amigos. 

“Aconteceu que, numa destas vezes, já à tardinha, quando pensava em voltar para casa, ouvi certo rebuliço na Rua e perguntei o que era aquilo...”

Joramor notara que o Zé sabia fazer uma narração com tanta precisão, como se tivesse decorado. Também observava que usava uma linguagem desenvolvida, naturalmente fruto de convivência que tinha com os habitantes da Rua, como ele chamava.

- Me disseram: "- Então você não sabe ainda?” Não, respondi. – “É Lampeão que está no curral do açougue.” 

"Ainda que muito falado, o nome de Lampeão não me pareceu tão grande como achavam as pessoas que ainda estavam na bodega de Seu Zezé Martins.”

“Saindo da bodega, acompanhei algumas pessoas que seguiam para a Rua Nova e escutava, de vez em quando, alguém dizer: “Seu Felismino Dionísio, o Delegado, recebeu um bilhete do Capitão, comunicando que ia entrar na Rua.”

“Quando cheguei na casa do Delegado Felismino, encontrei lá muita gente e ele no meio, mostrando a cada um o bilhete que recebera e que estava assinado por Virgulino Ferreira. Estava escrito de lápis, num pedaço de papel do tamanho desta folha – e mostrou uma folha seca, caída ao chão, de uns oito centímetros de tamanho, por cinco ou seis de largura.

“A letra não era feia não, moço. Eu li o bilhete todinho. Dizia que ia entrar, mas pedia o consentimento do Delegado e este estava então consultando os amigos como deveria fazer. Alguém aconselhou que primeiro devia falar com o comandante do destacamento.

“Seu Felismino foi até o quartel do destacamento, que contava com um cabo e cinco soldados, mas quando chegou lá não encontrou ninguém. Tinham saído e levado o armamento e munição. Com medo de que os soldados quisessem enfrentar os bandidos e estes se vingassem na população, o Delegado consulta, novamente, os amigos.

“-Olhe, Felismino - disse um - segundo a vizinha informou, os soldados seguiram na direção da Baixa da Tapioca. Lampeão vem pelo outro lado. Acredito que os soldados se ausentaram com o objetivo de deixarem a Rua livre.

“Verdadeira procissão acompanhou o Delegado, naquela tardinha, bem clara, em direção ao curral do açougue. Todos queriam conhecer o afamado Capitão Lampeão, autor de muitas façanhas, todas elas causadoras de luto e lágrimas.”

“E assim foi a primeira visita ao Carira e ao Estado, pelo grupo, que se compunha de oito homens, inclusive o Capitão e Volta Seca, rapazola que não podia sequer com o fuzil e, por isso, usava um rifle papo amarelo. Também Curisco, chamado de Diabo Louro, fazia parte do grupo, de quem se contava agilidade e valentia.”

Permaneceram até altas horas da noite, jantaram na casa do Delegado e beberam conhaque Cavalinho nas diversas bodegas e, depois de arrecadarem pequena importância em dinheiro, seguiram viagem para o incerto, o indeterminado, o mundo da aventura, do crime.

- E a população do Carira não sofreu nenhum dano físico ou Material?

O narrador sabia, como bem o disse o companheiro, contar história e era mesmo inteligente e versado. A pergunta de Joramor, respondeu prontamente.

- Não, nenhum mal fez. Falou-se dias depois, que um certo negociante cogitara, com outros companheiros, de atacar o grupo de surpresa, quando o estado quase de embriaguez se manifestava. Isto não foi confirmado.

- Depois voltaram a Carira?

- Sim, no mesmo ano de 1929, meses depois. Só que desta vez não comunicou ao Delegado. Quando o dia amanheceu, a população tinha o grupo pela frente, agora de dez homens, dentro do povoado e por ele sabendo terem sido sangrados três pessoas nas imediações de Serra Negra, e exibiam os punhais, de cerca de oitenta centímetros, em forma de espeto de três quinas, ainda sujos de sangue.

Dessa segunda entrada, a população como se comportou?

- Mais apavorada do que da primeira vez, sabendo o que ocorrera na véspera, em Serra Negra. Não fizeram mal a ninguém. Comandava o destacamento policial um cabo, preto, que gostava de caçada e era bom atirador. Quando os bandidos foram embora, o cabo arrotou que fora impedido pelo comerciante Francelino Gordo, de atirar em Lampeão, que estava sob a mira do seu fuzil, lá no fundo da bodega de Balbino, no momento em que levava à boca um copo do seu preferido conhaque Cavalinho. Francelino negou-se a confirmar a bravata e ninguém o vira em tal local.

- Qual a roupa e equipamento que traziam ou trazem consigo?

- É, compadre, este moço ta querendo sabe de muita coisa!

- Não vejam, meus amigos, outro desejo ou intenção de minha parte, senão conhecer tais fatos e detalhes, pois não sou daqui e é esta a primeira vez que ouço falar a respeito e com tal conhecimento, creiam-me.

- Acredito no que você está dizendo. Mesmo porque não estou falando nada de mal. Estou contando o que se passou.

- Bom, isto é verdade. É que, compadre, como senhor sabe, a gente sofreu o que sofreu e ainda temos gente nossa lá e temos de voltar um dia.

- Eles andam vestidos de blusa de mescla azul, abotoada até o pescoço; usam culote do mesmo pano ou de cáqui; calçam alpercatas de couro bem tratado e curtido; usam meias de algodão. Como armas, o Capitão Lampeão carrega um mosquetão, com a bandoleira enfeitada de medalhas e moedas de prata; usa dois parabenuns, um punhal de quase um metro de tamanho, atravessado na frente, preso na cartucheira da cintura. O equipamento se compõe de dois embornais de mescla azul, enfeitados de sutaches brancas, formando artísticos desenhos, pesos aos ombros por meio de largas tiras do mesmo pano e igual enfeites, ombros protegidos com pequenos cobertores de lã. Metade dos embornais está cheia de balas de fuzil, a granel. Sob a contura, uma cartucheira cheia de pentes de bala de fuzil e outra, mais estreita, de balas de parabélum, artisticamente bordadas com tiras brancas de pelica; uma bolsa de couro, também conhecida como fogosa, muito bonita, com fechadura de metal, carrega, como dizem os filhos da candinha, a fortuna em dinheiro e joias.

-Tal equipamento deve ser muito pesado para um só homem conduzir, não é mesmo?

--realmente, contudo eles estão acostumados. Tive ocasião de apalpar os embornais. Dizem que o equipamento completo pesa mais de trinta quilos.

- Naturalmente que, para dormir ou tomar banho, tem que tirar tudo.

-Geralmente só tira quando estão em acampamento seguro. Fora disto, dormem assim mesmo, encostados em árvores e nunca tomam banho. O mau cheiro do corpo, abafado muitas vezes pelos perfumes que derramam na roupa, forma ou produz uma espécie de inhaca.

- Ouvi falar que as forças que os perseguem, em muitas coisas a eles se assemelham, é verdade?

- Os trajes e equipamentos, muitas vezes se confundem. Até mesmo o cabelo comprido, como de mulher, muitos dos contratados usam. Posso até afirmar, aqui para nós e que ninguém nos ouça: às vezes são piores do que os bandidos.

- Aqui em Sergipe, quais outros lugares onde os bandidos passaram? 

- Estiveram no Carira duas vzes e se lá não voltaram mais, foi porque o povo resolveu reagir, armando-se com o fim de não deixa-los entrar novamente. Tiveram no saco do Ribeiro e, de lá, Lampeão telefonou para Seu Dorinha de Itabaiana; foi o que ouvi dizer. Estiveram até na cidade de Capela, que fica na Cotinguiba e tem estrada de ferro. Em outros lugares tentaram, mas o povo reagiu. Estiveram ainda em outros, que assim não me recordo.

O fogo há muito se tinha apagado; os dois filhos de José Pequeno dormiam a sono solto; somente Joaquim bocejava, em luta com o sono, quando deles, Joramor se despediu.


Almas Torturadas. Rio de Janeiro, 1967. João Rabelo. Páginas: 75/80. Capítulo XIII.

Fonte: facebook
Página: Robério Santos

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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