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terça-feira, 12 de agosto de 2014

MENINO DO CAIS

Por Rangel Alves da Costa*

Menino do cais. Mas qual o cais do menino? Um mundo de cais. O cais do rio, da avenida, da estrada. O cais da porta, da janela, da solidão. O cais da praça, do descampado, da vereda espinhenta. Qualquer cais poderá ser o cais do menino.

Mas não é todo menino que é menino do cais. Verdade é que muitos meninos são afeiçoados ao menino do cais. Aqueles que perambulam pelas ruas, esquinas, que dormem debaixo de marquises. Aqueles pequenos engraxates, ou aqueles outros que simplesmente vivem ao relento dos dias e das noites remexendo em lixões, cheirando cola, experimentando drogas, fazendo pequenos furtos.

Mas não são tais meninos. Os meninos do cais não são somente aqueles abandonados, sem família presente, sem lar. Os meninos do cais não são aqueles que são avistados sem direção, sem norte na vida. Eis que, acredite ou não, o cais conhece muito bem outros visitantes, e até viventes da beira do cais, que são adultos, conscientes, conhecedores dos meandros da existência.

Por isso que me vejo como um menino de cais. Sim, também caminho por suas areias, molho meus pés nas espumas onduladas, sento e converso com as pedras, recolho as flores tristes jogadas, escrevo palavras nos seus beirais. Sou aquele menino de cais que fica horas a fio procurando encontrar alguma coisa, avistar algo, ter diante de mim qualquer resposta.

Meus olhos avistam as velas que chegam e partem, vêem e sentem o mistério das distâncias das águas, acompanham as gaivotas no seu voo do entardecer, miram as ondas que batem e que voltam. Tantas vezes olham sem nada enxergar. E assim porque apenas presença sem motivo maior.


Mas será engano imaginar que o cais que tanto busco possui apenas águas adiante. A metáfora da vida procura o rio ou o mar para se expressar porque ali toda uma simbologia de chegada e partida, de ansiedade e solidão, de alegria e contentamento. Basta que o ser se imagine uma vela ou um barco pequeno na beira das águas, às margens do cais, e tudo será compreendido como uma incerteza: será que o barquinho vencerá aquela imensidão de segredos e mistérios?

Meu cais é também de cimento, de chão, de asfalto. Meu cais é e está em todo lugar. Meu barco está dentro de mim e no próximo, está na porta que abro e na estrada que caminho. Meu barco também está nos sonhos e esperanças, nos desejos e vontades, mas também nos medos e temores, nas dúvidas e desencorajamentos.

Por isso mesmo que meu barco teme sair do cais e seguir até as águas profundas. O meu barco teme ficar no cais e ser tragado pelas dunas que se formam ao redor. Sei que é um barco desafiador, que enfrentaria tormentas e temporais, mas não sei se sairia vitorioso com a falsidade da brisa ou com a medonha presença da aragem.

Mas só tenho esse barco, só possuo esse cais, e nada mais me resta fazer senão desafiar os perigos e ir muito além do horizonte das gaivotas. Mas nunca sei o instante ideal de partir, de seguir adiante para fazer valer outros objetivos além daquele de simplesmente viver. Por isso mesmo que tanto procuro o cais, que tanto me avistam no cais, que tanto avisto os arredores da vida através do cais.

Um dia, quem sabe, não mais serei visto no cais. Ou a morte ou a vida, mas não mais o cais. Chega um tempo que os sonhos encontram a realidade, os planos acostumam com o conseguido, as fantasias sentem a dureza da pedra. E será num tempo assim que já não mais caminharei até o cais.

Simplesmente aceitarei as dores da vida de pés no chão, ainda que os espinhos dilacerem e atormentem. Mas continuarei seguindo em frente, consciente que as ilusões ficaram para trás, no cais. Até encontrar uma ponte. Que é o limite de tudo.

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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