Seguidores

domingo, 6 de dezembro de 2015

A PORTA E A ESTRADA

Por Rangel Alves da Costa*

Creio que não há mais nada a fazer, ao menos aqui. Nos últimos dias, como se o destino já estivesse antecipando tudo, meus pequenos afazeres cotidianos foram se dando por satisfeitos e já não havia qualquer coisa importante a me preocupar. Certamente que eu poderia continuar dando milho aos pombos, limpando as folhagens que se acumulam pela praça, reparando os canteiros sempre revirados pelos que vão passando ao longo do dia.

Tudo há de ser resolvido sem a minha presença. Talvez somente os pombos sintam alguma saudade, mas depois buscarão alimento noutras praças e noutras bondosas mãos. Mas sentirei muita falta e muita saudade, não somente dos pombos se aproximando, das folhas caídas, daquelas tardes poéticas de outono, dos canteiros revirados, mas também dos diálogos silenciosos que mantinha com as paisagens e seus habitantes invisíveis a muitos.

Quando meus olhos começavam a passear após sentar no mesmo banco da praça ao entardecer, logo encontrava motivos de felicidade, mesmo quando as paisagens pareciam entristecidas. Aquelas folhas imensas caindo lá de cima e se espalhando pelo chão, aqueles pássaros voejando de canto a outro, a ventania que soprava cantando. Então dialogava com tudo ao redor e deixava que as sombras da noite descessem para as despedidas. Tudo isso vai ficar para trás.

Tempos de brisas perfumadas e sinos dobrando do alto da catedral. A cada toque e um coro de anjos entoando o Salmo do dia. Não precisava estar na igreja para conversar com Deus, com santos e querubins. Minha amoreira poema, minha folha poema, tudo poema. E a vela acesa junto ao oratório após a prece da hora da Virgem. Como o tempo passou, agora sinto. O amarelado no espelho e no retrato da parede não mais permite aquela luz de antigamente. Como o tempo passou. Ainda hoje, quando ouço o sino ao longe, é que percebo que somente a fé não envelhece.

Esse meu mundo envelheceu demais dentro de mim. Não, sei que não envelheceu e que apenas estou criando justificativas para abrir e fechar a porta e seguir pela estrada. Esse é o mundo que ainda amo, que ainda quero, que ainda me satisfaz e me realiza. Ora, aqui tenho a minha casinha, o meu jardim de poucas flores, minhas plantas de quintal, meus amigos de bico e penas que chegam e saem a qualquer hora do dia. Aqui tenho os meus livros, os meus escritos, os meus retratos e minhas saudades. E aqui também o silêncio que tanto necessito para pensar em tudo e também em nada. Mas então, por que partir?


Não sei, não sei. Ou sei e sei. Na verdade, o martírio não está em mim, mas a partir dos rascunhos que se acumulam pelas gavetas e estantes. Todos os escritos parecem tratar de um mundo insuportável ao ser humano. Há silêncios profundos, solidões infindáveis, lágrimas incessantes, saudades demasiadas, dores, abandonos e sofrimentos. E tudo isso em ambientes sombrios, em casas e quartos fechados, em lugares distantes do sol e da lua, em paisagens quase sempre outonais ou de infinitas tristezas. Mas eis o crucial: tudo parece comigo.

Sim, todos os rascunhos, todos os escritos, parecem comigo. Não intencionalmente, mas creio que ao longo de todos esses anos venho escrevendo uma autobiografia de angústias e sofrimentos. A cada letra, a cada página, e eu escrevendo sobre mim mesmo e pensando estar falando de outras pessoas, de outros personagens, de outras vidas. Aos poucos fui descobrindo que todos os personagens, todos os enredos, todas as paisagens, fazem parte do meu mundo. O mundo criado é o meu mundo então revelado. O mundo solenemente triste.

Aquele que lê a carta e depois chora sou eu. Aquele que caminha solitário pelo quarto sou eu. Aquele que tenta avistar o mundo pela fresta da janela sou eu. Aquele que bebe e sente que a lágrima se mistura à aguardente sou eu. Aquele que um dia, não suportando mais tantas aflições, abriu a porta e procurou um banco de praça, também sou. E eu também que não tenho outros amigos além dos pombos, das folhas, dos canteiros, dos pássaros, da ventania. Tudo e em tudo sou eu. Então me vejo dividido em dois: o que fica envelhecido nos escritos e o velho que vai partir.

Um ato simples. Basta abrir a porta e partir, sem remorso nem olhar para trás. Um ato simples e fácil assim. Mas nada mais difícil do que abdicar de um mundo e reinventar a vida perante o desconhecido. Talvez jogasse meus escritos lá fora e me trancasse no quarto durante mil dias. Mas aquelas vidas – que são as minhas – não sabem voar na ventania. E somente eu sei voar. Por isso que abrirei a porta e sentarei no velho tronco do jardim sem flores. E ali esperarei a ventania maior chegar. E então o último voo.

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário