Seguidores

sábado, 6 de janeiro de 2018

LAMPIÃO NÃO MORREU: O LEGADO CULTURAL DO CANGAÇO

Por Carlos Braz

No próximo dia 28 de julho completam-se 80 anos da morte do afamado cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, juntamente com sua companheira Maria Bonita e nove “cabras” do bando. O cenário do sinistro acontecimento foi uma grota no interior da Fazenda Angicos, localizada à época, no município sergipano de Poço Redondo.

Decorridos tantos anos, a história do cangaço como fenômeno social do nordeste brasileiro tornou-se objeto de estudo de cientistas sociais de diversos ramos. E sobre o capitão Virgulino, em particular, muito ainda há de se ouvir falar. Muitos mistérios ainda existem para serem decifrados, mistérios esses que desafiam as pesquisas de centenas de historiadores e das instituições voltadas para esse tema.

Lendas e fatos reais se misturam ao sabor dos interesses pessoais, eternizando a figura do “general do sertão”, ensejando debates apaixonados que adicionam novas obras à já extensa bibliografia a respeito do assunto.

Evidentemente, ao se falar desse flagelo regional, a primeira imagem que vem à mente é a violência extrema daqueles tempos; o banho de sangue proporcionado pelos facínoras, os estupros, sequestros e assassinatos perpetrados em um ambiente inóspito onde só sobreviviam os que conheciam muito bem o sertão catingueiro.

Tempo dos coronéis, dos coiteiros e das volantes, que não hesitavam em torturar até a morte aqueles que porventura não fornecessem informações sobre o paradeiro dos meliantes. A terra seca, o gado magro, o sol causticante, a fome e o sofrimento sertanejo para sobreviver foram a moldura perfeita para o drama da vida real que se desenrolou nas paragens nordestinas.

Contudo, o conflito social conhecido como cangaço não começa com Lampião. Os embates agrários, os valentões que não levavam desaforo para casa, os capangas à serviço dos poderosos formaram os primeiros bandos de desordeiros.

Desde meados de 1871 já corria pelos sertões as histórias sobre Jesuíno Brilhante. Considerado o precursor do cangaço, assombrava as regiões da Paraíba e Rio Grande do Norte, assaltando os ricos para abastecer os pobres, segundo relatos, durante a grande seca que devastou todos os estados da região.

Outro chefe de bando afamado foi o Sinhô Pereira, cuja valentia e arruaças com os destacamentos policiais fizeram história, espalhada de boca em boca, em terras pernambucanas. Com o passar dos anos e o desejo de levar uma vida pacata, longe das correrias e tiroteios, o celerado se afasta da vida bandida e toma destino ignorado.

É nesse momento, em data incerta que gira em torno de 1918, que surge a figura lendária do rei do cangaço. Corrido da polícia após uma rixa com seu vizinho, o proprietário de terras, Zé Saturnino, substitui Sinhô Pereira como líder e supera seus predecessores em ferocidade e astúcia.

Foram aproximadamente 20 anos de selvagerias pelas veredas do sertão, combatendo quase sempre em condições adversas. Como estratégia, armou uma rede de colaboradores, os coiteiros, que forneciam ao bando informações sobre os deslocamentos das volantes, alimentação, munição e lugar seguro para recuperação dos ferimentos em combate.

Também inovou em técnicas de guerrilhas na caatinga, percorrendo longas distancias a pé, ou na friagem da noite, enquanto seus perseguidores descansavam. Criou um modo de usar o fuzil em posição lateral, o que diminua as possibilidades de serem atingidos por projéteis inimigos.

A partir de Virgulino, o contexto social do Nordeste chama a atenção do Brasil e elimina-lo torna-se uma questão de honra para o Estado brasileiro, o que ocorre naquela madrugada fria e sanguinolenta de Angicos.

Ali morre o homem e nasce o mito, que atravessa os tempos cantado em prosa e verso, nos repentes dos violeiros e nas sextilhas dos cordéis. E nos rastros das cantorias vem os bonecos de barro vendidos nas feiras, os chapéus de couro enfeitados com estrelas, as alparcatas de couro cru capazes de enfrentar o rigor das caatingas, e um sem número de produtos que constroem o legado cultural da saga cangaceira.

A história do cangaço passa a ser explorada comercialmente e a sua estética torna-se objeto de estudo de disciplinas acadêmicas. Ao mesmo tempo, a partir de relatos orais e obras referendadas por pesquisas comprometidas com a verdade, lançou-se um novo olhar sobre a figura do bandido desalmado que matava pelo prazer de matar ou por vingança: percebeu-se o ser humano existente atrás do marginal.

Muitos entraram na vida do crime para não morrerem assassinados por desafetos poderosos, protegidos pela justiça dos homens. Quando tinham algum tempo livre para amenidades, dançavam, cantavam, tinham saudades dos parentes, e cultivavam uma vaidade explícita nas roupas enfeitadas com bordados e moedas. O companheirismo e lealdade era fundamental para a sobrevivência de todos.

A religiosidade, marca indelével do povo nordestino, também se fazia presente no cotidiano daqueles homens embrutecidos pela vida, em uma mistura entre o sagrado e o profano. Crucifixos e patuás para fechar o corpo ocupavam o mesmo espaço nos embornais. O respeito aos templos católicos e ao padrinho Padre Cícero Romão Batista, era lei que não podia ser desrespeitada, sob pena de morte, e quando podiam, rezavam uma Ave-Maria às 6 horas da noite.

A imaginação do povo alimentou as lendas, aumentando ou diminuindo um pouco de tudo. O xaxado foi intitulado como trilha sonora da maratona entre xique-xiques e mandacarus, a “muié rendera”, os embornais coloridos, as cartucheiras cruzadas no peito e o punhal afiado tornaram-se símbolos daqueles tempos de miséria e injustiças.

Na contemporaneidade, a chamada estética do cangaço em suas variadas vertentes, alimenta um segmento comercial diversificado que emprega e beneficia milhares de pessoas de todo o Brasil, gerando renda e desenvolvimento social, não só no Nordeste brasileiro.

Hoje essa verdadeira indústria cria pontos turísticos temáticos em cidades que conviveram de algum modo com o flagelo do cangaço. Piranhas-AL, de onde partiu a volante com destino a Angicos, possui dezenas de pousadas e um museu, e Canindé do São Francisco-SE, conta com uma boa estrutura gastronômica e de transporte fluvial, são bons exemplos disso.

O cangaço e sua estética expandiu-se pelo mundo através das artes visuais, do cinema e da televisão, movimentando fortunas com patrocínios e exibição em países da Europa, América e Ásia. Está presente na obra brilhante de Glauber Rocha, Dias Gomes, Ariano Suassuna, dos sergipanos Jenner Augusto e Orlando Vieira, entre tantos outros.

Muitos artistas foram imortalizados através de atuações magistrais, à exemplo de Nelson Xavier e Tania Alves que encarnaram brilhantemente o capitão e sua Maria em seriado de TV, e Marco Nanini, no magnífico Auto da Compadecida.

Nas feiras nordestinas, uma infinidade de objetos em cerâmica e madeira, representando cenas e imagens de Lampião e Maria Bonita são vendidos diariamente, bem como bolsas com alças floridas, no formato de embornais, camisetas, bonés, punhais, espingardas de madeira e o indefectível chapéu de couro em forma de meia lua com as estrelas de prata em detalhe.

Já os violeiros e cordelistas continuam a entoar e escrever sobre as façanhas lampiônicas, surpreendendo os ouvintes e leitores com suas imaginações férteis, que mesclam fatos verídicos com outros, improváveis, mas que encantam a todos e lhes garante bom rendimento.

Enfim, grupos teatrais e musicais, quadrilhas juninas, escultores, historiadores, curiosos, escritores reconhecidos e outros, que não passam de embusteiros e falsificadores da história, muitos abordam o cangaço como fonte de inspiração, e são recompensados por isso.

A maior tragédia social que assolou as terras nordestinas ainda frequenta a memória social do povo, e o seu legado cultural mostra-se perene, o que garante ao seu principal protagonista, o Capitão Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião, sobreviver através das artes visuais, da literatura e do cancioneiro popular.

Carlos Braz é sergipano, natural de Aracaju. É Bacharel em Museologia, formado pela UFS, e acadêmico de Licenciatura em História também na UFS. É membro da Associação Sergipana de Imprensa (ASI).


https://www.facebook.com/groups/lampiaocangacoenordeste/

Adquirido no acervo do pesquisador José João Sousa

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário