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quarta-feira, 14 de março de 2018

TOMÉ, O SERVIDOR.


Por José Ribamar Alves

Eu vim ao mundo sem o mundo saber da minha vinda.

E, foi sem o mundo saber, que fui crescendo como uma árvore que, castigada pela sede, amarelada pelo sol e surrada pelos ventos, necessita manter-se de pé e continuar vivendo.

E, sem entender exatamente nada sobre a vida, sobre o futuro e muito menos sobre a liberdade, vi-me deixar dias e mais dias, noites e mais noites à distância de cada surpreendente amanhecer.

E nos velhos tempos de mil novecentos e setenta e dois, Boa vista no município de Severiano Melo-RN, servia de testemunha ocular e de cenário para cenas inesquecíveis de uma infância, sem infância, para eu, Tomé e outros renegados pelo privilégio que toda criança tem de sentir-se liberta como as aves dos campos.

E, mesmo sem entender os mistérios da vida, fui vendo morrerem pessoas que conhecia, assim como conheço os chinelos que calço, o caneco que uso para tomar água, a cama que arrumo para dormir, a tacha que uso para fritar ovos e o caderno que utilizo para descrever as orgias do afortunado e as dores ensopadas pelas tórridas lágrimas dos inditosos  que, predestinados, vem ao mundo.

E, como o ciclo da vida não para, nem muda suas regras, então, morreu Zé Telécio, o patrão que tentava ser certo como dois e dois são quatro, partiu Vicentão, que para passar por uma porta comum, tinha que se abaixar um palmo ou mais, morreu Sebastião Sapo, que por uma cachacinha trocava um pouco do seu tempo, faleceu Zé Boágua, que tinha o andar de um nordestino puro como o leite do peito da vaca Tauá, partiu Joel, que para tomar banho precisava a patroa, madrinha Ceci Ferreira, passar-lhe uns, aranha-gato, morreu Julita, pobre Julita, que nunca teve um marido para compartilhar seus sentimentos, faleceu Pedro Ângelo um zelador dos plantios de algodão, de milho e de feião, do patrão, por fim, morreu Zé Alves, meu pai homem simples, mestre em construções de cercas de pedra e de arame farpado, um ser honesto e incansável, pelejador pelo sustento da família.

E lá se vão os anos caminhando a passos de camelo, sem esperar por ninguém e, eu sem notícias daquela terra, sigo minha caminhada, marcado pelas lembranças de outrora e arrastado pelo tempo feito boi de canga, pelo caminho que começa no berço e termina na morada do silencio.

E, como o destino não hesita separar pessoas, distanciou-me do meu passado e das pessoas que me viram crescer, sem imaginarem que eu venceria o anonimato, a miséria, o preconceito, a solteirice e um pináculo importantíssimo, chamado meio século de existência.

Somente depois de muito tempo, encontrei-me com Tomé, na Ilha de Santa Luzia em um dos bairros da grande Mossoró-RN, e achei-o de semblante sem tantas mudanças, mas ainda chicoteado pelo infortúnio miserável que ao invés de proteger, deserda quem tanto tenta fugir de suas emboscadas.

E, vendo-me de perto, Tomé fez questão de retroceder comigo aos velhos tempos e me suprir de elogios assim dizendo: Esse cara, quando jovem era um extraordinário jogador; fazia o que bem queria com a bola nos pés.

E continuou assim dizendo: Ele foi criado no sítio que a gente morava,
E sempre foi um cara bom.

E eu diante daquele brilho prazeroso que invadia seus olhos, já me sentia por demais lisonjeado, mas muito feliz e agradecido.

E, continuou Tomé a falar: Nós pescávamos de anzol, jogávamos bola juntos, e ate falávamos dos sonhos que tínhamos com o padeiro aos domingos pela manhã, gritando: olhe o pão, quem vai quer? E que pão cheiroso e saboroso.

Mas, Tomé, não me falou se havia casado e tido filhos; talvez, quem sabe, por não ser bem casado, por não ter tido orgulho de ser pai, ou até mesmo por não ter achado necessário, mas confesso eu que teria gostado de saber.

A essa altura Tomé já havia fechado o corpo com duas ou três doses de aguardente e, quando percebi que Tomé já havia tomado além da conta, despedi-me do velho amigo e fui para casa.

Mas infelizmente com poucos anos depois Tomé deixava  as conversas de pé de balcão e os companheiros de farra.

Mas quem era Tomé, afinal?

Tomé, nas antigas, era um servo de quem tentava ser certo, como dois e dois são quatro; acordava cedo para encher os recipientes da casa da fazenda, com água trazida do açude num galão, às vezes num jegue com ancoretas, vez por outra em roladeira, e querendo ou não tinha que fazer isso todos os dias antes de merendar.

Como sofrera o pobre Tomé, mas Tomé mesmo assim viu muita gente ser vestida com um paletó de madeira e partir para nunca mais voltar, assim como eu também vi, inclusive ele!

Mas a morte me deixou viver, talvez justamente para falar sobre Tomé e as pessoas que ele nunca esquecera antes de partir.

Mas pra desconto ou aumento dos pecados, eu não fui ao enterro de Tomé!

Não fui talvez pra não lembrar tanto de sua subserviência, de sua prestação de serviços sem prestação de contas, de sua mocidade mal aproveitada ou até mesmo do nosso destino parecido um com o outro.

Eu, assim como ele, não tive uma boa infância, cresci privado do direito de sorrir, se achasse graça era reclamado porque aquilo era coisa de gaiato.

Para mim até hoje, sorrir é um entrave, um engasgo, uma coisa difícil.
Cresci e me criei sem poder estudar, mas a curiosidade de olhar letras e palavras fez de mim um autodidata.

Portanto, hoje me valho das letras, das palavras e das lembranças fujonas e regressastes que me permitem pensar que sou capaz de ser alguém perante tantos alguéns, e sem receio de errar, afirmo em alto e bom tom, Ah, como se tem Tomés neste País.

Autor: José Ribamar Alves, 05-08-2017.

Enviado pelo professor, escritor, pesquisador do cangaço e gonzaguiano José Romero de Araújo Cardoso

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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