Por Benedito Vasconcelos Mendes
A Fazenda
Aracati distava 60 quilômetros da cidade de Sobral e situava-se entre dois
distritos sobralenses, Caracará e Aracatiaçu (Santo Antônio do Aracatiaçu). Da
fazenda ao Caracará são 5 quilômetros e para Aracatiaçu são 15 quilômetros. Nas
décadas de 1950 e 1960 ainda não existiam estradas asfaltadas para Sobral e as
frotas de ônibus e de táxis (carros de aluguel, geralmente Jeep da Marca
Willys) eram muito reduzidas, contribuindo para que a grande maioria dos
problemas de saúde da população sertaneja fosse tratada de maneira empírica,
por profissionais locais, que praticavam a medicina caseira regional
(enfermeiros de formação prática, parteiras, encanadores de braço, arrancadores
de dente, raizeiros e curandeiros-rezadores), residentes nas duas vilas (Caracará
e Aracatiaçu) ou mesmo em fazendas da região. Na Vila Caracará morava o Seu
João Enfermeiro, um profissional da área da saúde que tinha muita habilidade e
prática para curar as enfermidades dos habitantes das comunidades rurais. Era
um misto de enfermeiro, farmacêutico, dentista e de médico. Ele aplicava
injeção, costurava, com linha zero e agulha grande de coser tecidos, facadas,
estrepadas e outros ferimentos. A maioria dos seus clientes era vítima de
chifradas de boi, coices de burro, quedas de cavalo, mordidas de cobra e
ferroadas de escorpião e de outros invertebrados peçonhentos. Ele morava
vizinho à bodega do Seu Raimundo Galdino, que vendia produtos farmacêuticos
industrializados, como Cibalena, Cibazol, Melhoral, Sonrisal, Elixir Paregórico,
Óleo de Rícino, Pílula de Vida do Dr. Ross, Pílula de Matos, Mercúrio Cromo e
mais alguns outros remédios populares. A mulher do bodegueiro, Dona Ciça, era
parteira e rezadeira, pois curava quebranto, espinhela caída, mau olhado,
moleira caída e outras doenças infantis. Na Vila de Aracatiaçu morava o
encanador de braço, de nome Expedito, e o arrancador de dente Florisvaldo. Em
uma fazenda próxima à cidade de Miraíma, distante 25 quilômetros de Caracará,
residia Seu Raimundo Raizeiro, que vendia mezinhas, como banha de tejo, banha
de raposa, de cobra cascavel, de traíra, de cágado, de jia, de galinha e sebo
de carneiro capado, bem como produtos de origem de plantas, como raízes, cascas
de caule, folhas, flores, frutos e sementes, que eram usados como chá, lambedor
e unguento.
Um certo domingo, quando eu e meu avô tínhamos ido visitar um amigo
dele na Vila Caracará, nos deparamos com uma cena incrível, em que um jovem
durante um destes forrós sertanejos, que ocorrem nos dias de sábado, levou uma
peixeirada, cortando o peritônio e deixando o intestino à mostra, com seus
movimentos peristálticos. A vítima estava sendo socorrida por João Enfermeiro,
na sombra de um pé de tamarindo, ao lado da igreja. Ele lavou bem as mãos com
sabão preto, enxaguou-as com álcool, colocou o intestino da vítima para dentro
da caixa abdominal e costurou com linha zero e agulha de coser pano (tecido).
Quatro homens fortes seguravam as pernas e os braços da vítima, enquanto um
lenço ensopado com éter era colocado, a pequenos intervalos de tempo, no nariz
do rapaz ferido, para anestesiá-lo. Pelos gritos que a pobre vítima soltava,
via-se que a anestesia não estava surtindo efeito. Era uma cena selvagem e
apavorante, que traduzia a cruel realidade da miséria e abandono em que vivia o
sertanejo nordestino. Para surpresa de meu avô, cerca de um mês depois da
ocorrência desta cena, a vítima da facada apareceu na Fazenda Aracati, para
comprar um reprodutor caprino, com o ferimento totalmente cicatrizado.
Minha
avó tinha uma certa habilidade para o seu trabalho como parteira e fazia os
partos das moradoras da fazenda e das mulheres que residiam nas propriedades
vizinhas. Quando ela estava passando temporada no Sítio Frecheiras, na Serra da
Meruoca, também fazia os partos das mulheres de lá. Ela não cobrava pelos
serviços de parteira. Minha avó tinha dois bancos de parir, um leve, de
mulungu, que ela transportava de sua casa em Sobral para o Sítio Frecheiras e
para a Fazenda Aracati. O outro banco era de cedro, mais pesado, que ficava
permanentemente na Fazenda Aracati. O banquinho de parir feito de mulungu, hoje
faz parte do acervo do Museu do Sertão. Meus pais, com muita tristeza, com
lágrimas nos olhos, certa vez me revelaram uma tragédia ocorrida com minhas
duas avós, paterna e materna. Minha avó paterna, Antônia Valdemar Mendes,
sertaneja, que também era parteira, em uma de suas idas a Sobral, foi chamada
em situação de urgência para fazer o parto da minha outra avó materna, Maria da
Glória Vasconcelos, quando houve uma complicação no parto e minha avó veio a
falecer. Ela morreu de parto do meu tio José Helder Vasconcelos. Depois de
algum tempo, quis o destino que minha mãe contraísse matrimônio com meu pai.
Um
outro fato de sucesso da prática da medicina popular que testemunhei foi quando
o Seu Expedito encanou o braço de uma criança de 7 anos, neto do vaqueiro Sales
e filho do Tonho da Dona Lourdes, que tinha fraturado o rádio, numa queda de
cavalo. Ele puxou o braço da criança, colocou as duas pontas do osso (rádio) no
lugar, confeccionou as talas de imobilização com talos de folhas de carnaubeira
e fez a imobilização do braço, amarrando as talas com linha zero. Semanalmente,
o Seu Expedito olhava o braço quebrado do menino, para ver se estava torto.
Depois de algum tempo, o encanador de braço retirou as talas de carnaubeira e o
braço estava encanado, com os ossos soldados corretamente.
Enviado pelo professor, escritor e pesquisador do cangaço Benedito Vasconcelos Mendes.
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário