Texto Daniela Matos
O Cangaço
surgiu por volta de 1870, em meio a uma crise econômica passada pelas cidades
do interior do Nordeste, com a crescente industrialização, e um aumento da
desigualdade social da região, atenuada por uma grande seca. Os cangaceiros,
chamados de “bandidos sociais”, eram um misto de justiceiro e vingador,
combatendo a injustiça causada pela crescente desigualdade social e dividindo
opiniões sobre seus atos serem heróicos ou criminosos. Esse banditismo surgiu
como uma revolta espontânea contra a situação social, vindo de grupos rebeldes
que partiram para o crime como forma de sobrevivência e revolta contra as
classes dominantes.
Poucas vezes,
no entanto, é lembrado que as mulheres fizeram parte do cangaço durante a
última década de sua existência, a partir de aproximadamente 1930, passando a
ser aceitas no bando a partir da entrada de Maria Gomes de Oliveira, chamada de
Maria Bonita pela imprensa após sua morte. Ela era uma mulher separada, algo
incomum naquele tempo, quando conheceu o líder do cangaço, Virgulino Ferreira
da Silva, chamado Lampião. Após algum tempo de contato entre ambos e visitas do
cangaceiro, a polícia foi informada e a família de Maria, ameaçada. Com a
mudança de sua família para Alagoas, fugindo das ameaças da polícia, ela tomou
uma decisão inédita: acompanharia Lampião em sua vida no cangaço. Quebrando a
tradição do movimento, Lampião permitiu sua entrada e um precedente foi
estabelecido, permitindo que outras tivessem uma alternativa de vida no bando.
Estima-se que houveram mais de 60 mulheres nos grupos e subgrupos do cangaço.
Em meio a uma
sociedade que impunha um papel social muito específico para a mulher, a entrada
das mesmas em um movimento que já era por si só subversivo à ordem se mostrou
um ato de coragem e resistência a diversos padrões de gênero. As cangaceiras
eram sertanejas comuns, que viviam em sítios, e eram atraídas muitas vezes pela
possibilidade de mudar seu destino, rompendo com a proposta de um casamento
arranjado, da domesticidade, do papel exercido nas famílias e até da
religiosidade. Muitas aprendiam a ler e escrever, por exemplo, atividade pouco
comum para mulheres na época.
Como é
relatado pela ex-cangaceira Adília, no cangaço era possível fazer coisas antes
proibidas: dançar, se pintar, e pentear o cabelo como preferisse. Portanto,
juntar-se ao grupo foi uma declaração de independência própria. Além disso,
como já era sabido pela sociedade que essas mulheres estavam sendo visitadas
por cangaceiros e não eram mais virgens, se não fossem para o cangaço, acabariam
na prostituição.
No entanto,
havia cangaceiras que não estavam no bando por escolha pessoal, tendo sido
raptadas de suas casas, algumas com menos de 15 anos. Outras violências
aconteciam, como violência sexual após o rapto de mulheres, assassinatos de
cangaceiras por seus companheiros quando eram acusadas de adultério, sem que
qualquer um interviesse, respeitando os códigos morais instituídos por Lampião
no seio de seu grupo, e violências físicas vindas muitas vezes dos próprios
companheiros. Nessas práticas violentas contra as mulheres, é possível perceber
que o contexto do cangaço não estava isento dos pensamentos e atitudes
machistas da época, como reflexo de todo um pensamento social.
Outro episódio
que reitera o caráter machista e violento do pensamento social vigente mesmo
dentro do grupo é quando Lampião declarou não querer que as mulheres cortassem
o cabelo, e, ao algumas delas desafiarem-no e declararem que o cabelo era delas
e com ele elas fariam o que quisessem, tiveram o rosto marcado a ferro pelo
cangaceiro José Baiano. Apesar de casos assim serem específicos, se juntar ao
grupo podia ser visto como abrir mão de sua liberdade por algumas das mulheres,
já que eram obrigadas a seguir um homem que muitas vezes era violento, além de
não haver possibilidade de não possuir um companheiro: caso o seu respectivo
morresse e ela não se associasse imediatamente a outro, era morta, pois
carregava informações preciosas e secretas do bando. Práticas como essa
reiteram a necessidade existente de manter e demonstrar a autoridade dos homens
no bando.
Paralelamente
às violências sofridas, o cotidiano possuía aspectos que traziam no cangaço uma
possível alternativa para o papel tradicional da mulher. As cangaceiras andavam
bem vestidas e podiam usar vestidos que iam até o joelho, altura incomum para a
época, não eram incumbidas de cuidar dos filhos, e vivenciavam uma maior
divisão de tarefas, já que até 1930 se o movimento se autogeria apenas com a
presença de homens, levando todos a saberem cozinhar e lavar suas roupas.
Apesar disso, algumas atividades ainda retomavam sua vinculação com o papel
tradicionalmente feminino, como borda e costura. Dadá, ex-cangaceira, disse em
uma entrevista que, atreladas ao respeito ao marido, suas atividades e vida
eram como uma dona de casa qualquer.
Dentro das
rotinas de combate, às mulheres normalmente eram afastadas de emboscadas e
ficavam fora da área de combate. Seu papel, portanto, não era semelhante a de
uma amazona ou guerreira militante ativa. Mesmo assim, todas sabiam atirar e
carregavam pequenas armas para defesa. Ainda nesse papel, enfrentavam as
dificuldades da vida do cangaço: é relatado pelas próprias cangaceiras que às
vezes elas não comiam ou bebiam devido ao perigo iminente,dormiam no chão
molhado, tinham suas famílias presas e ameaçadas. Apesar das dificuldades, no
entanto, muitas delas declararam que não pensavam em sair do cangaço quando
estavam imersas no movimento, pois, apesar de difícil, era uma vida possível.
Outra
característica muitas vezes destacada na vida das mulheres do cangaço é a maior
autonomia adquirida. Elas eram não apenas companheiras, mas também co
participes, ativas nas atividades do bando. Maria Bonita, por exemplo, acolhia
e orientava as recém chegadas no bando, ensinando sobre a vida no cangaço. A
autonomia entre as mulheres era uma realidade, formando um grupo que se reunia
para conversar, bordar e discutir sobre a vida, e que, apesar da tentativa
mesmo dentro do bando de contê-las em uma posição predeterminada, elas tinham
opinião e se destacaram em diversos momentos. Em muitas situações, a mulher do
cangaço saiu da periferia da vida, sempre sendo adjunto de algum homem, e se
tornou autora da sua própria história, decidindo seu futuro de diversas
maneiras.
Dadá é um
exemplo de ex-cangaceira sempre relembrado por sua força excepcional: quando
seu companheiro, Corisco, morreu assassinado, ela pegou em armas e foi lutar
contra os soldados. Em vida, na época da anistia de Vargas, ele pensou em se
render e ela respondeu que ele que então pegasse as roupas dela e lhes desse as
suas, pois aquela não era uma atitude de homem. Apesar de seu rapto e
violência, passou a respeitar o companheiro e, com o tempo, tornou-se,
inclusive, incômoda para outros cangaceiros que não “aceitavam receber ordens
de uma mulher”.
Além disso, as
mulheres foram fundamentais em outros âmbitos, como, por exemplo, estabelecer a
identidade visual conhecida do cangaço, criando os bornais enfeitados. Esses
desafiavam, inclusive, o papel da masculinidade intocável dos cangaceiros que
passaram a se enfeitar com os bordados.
Contemporâneo
ao cangaço, o cordel, dentro da mentalidade machista, não retratava a mulher no
movimento. A imprensa, por sua vez, demorou para absorver a entrada das
mulheres nos bandos de Lampião e, quando o fez, as tratava exclusivamente como
vítimas da sociedade, como prostitutas, que não constituíram família ou eram
separadas, como Maria Bonita. Essa imagem negativa das mulheres trazia também
sua participação como insignificante, ressaltando muitas vezes detalhes que
nada tinham a ver com o movimento de fato, como sua aparência física. O cinema
era também responsável por essa imagem, retratando diversas vezes as
cangaceiras de maneira a desqualificá-las, menospreza-las e trazê-las como
adúlteras. O próprio nome Maria Bonita, dado a Maria Gomes pela imprensa, e a
idealização de sua aparência física deixam de lado os seus principais feitos
como uma mulher que desafiou seu tempo, lutando contra o coronelismo, o
machismo, se separando e deixando sua família para seguir Lampião e seu bando.
A relação das
mulheres com o cangaço é, em sua maioria, cheia de paradigmas, contrastes e
conflitos. Enquanto, por um lado, o movimento possibilitava a quebra de papéis
de gênero e a resistência feminina, por outro muitas vezes elas eram vítimas de
violência e não podiam escolher sair e, às vezes, nem se queriam entrar para o
bando. Mesmo dentro de novos paradigmas, o papel das cangaceiras como mulheres
de acordo com os padrões da sociedade era reafirmado. No entanto, é impossível
não reconhecer a importância da sua participação no movimento, representando
resistência, força e reinvenção dos limites possíveis para as mulheres
nordestinas da época, ocupando um espaço antes impensável.
Ao estudar o
cangaço, é impossível fazê-lo sem estudar a participação das mulheres no
movimento.
Para saber
mais sobre as mulheres e o cangaço, você pode acessar os links abaixo:
Documentário
“Feminino Cangaço”: https://www.youtube.com/watch?v=wsTCQ7LOeds
Acervo mantido
por Vera Ferreira, neta de Lampião e Maria Bonita: http://usuarioweb.infonet.com.br/~LAMPIAO/index.htm
Mais sobre o
Cangaço retratado no cordel: http://www.scielo.br/pdf/pcp/v24n4/v24n4a07.pdf
Mais sobre
Lampião e o Cangaço: http://puc-riodigital.com.puc-rio.br/media/4%20-%20lampiao,%20virgulino%20e%20o%20mito.pdf
Tags: cangaço, mulheres, resistência, sociedade
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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