“CORREIO DE ARACAJU” – 28/07/1937 - CANGACEIROS E
COITEIROS
Por Evaristo
de Moraes
A leitura de
várias obras acerca do assunto, inclusive os romances de José Américo e Prado
Ribeiro, e informações colhidas, em 1935, numa viagem pelo interior de Bahia e
Sergipe, ministraram-nos os elementos com que nos autorizamos a emitir as
opiniões e a chegar às conclusões aqui reunidas.
Antes de tudo, convém não atribuir grande importância a duas razões explicativas do ingresso individual no Cangaço: insopitável revolta contra alguma denegação de justiça e necessidade de vingar grave ofensa recebida. Pautam-se todos os casos pelo de Antonio Silvino, que, aliás, não merece confiança absoluta, por falta de confirmação fidedigna das palavras dele, evidentemente suspeitas.
Dir-se-ia, entretanto, a ser admitida a concepção mais generalizada, que todos os chefes dos sinistros bandos nordestinos reproduzem a personagem criada pelo romancista Henrique Kleist e aproveitada por Rudolf Von Ihering, na “LUTA PELO DIREITO”: Miguel Kolhaas, que, vítima de atroz iniquidade, armou-se de um facho incendiário e de uma espada degoladora, e foi espalhando por toda parte, a destruição e a morte...
Talvez (não o duvidamos), se possa encontrar alguma das aludidas causas num ou noutro caso de adesão ao Cangaço, essa espécie de nomadismo criminoso que assola o Nordeste e tem zombado, até hoje, da reação oficial; nenhuma delas porém, explica, integralmente, o fenômeno, por sua natureza, complexo, como todos os fenômenos da vida humana. Sem negar a influência de “fatores naturais”, reconhecemos a prevalência de “fatores sociais”. Certo, o meio periodicamente inóspito daquela zona e o caldeamento étnico de que procedem aquelas populações se refletem em algumas qualidades dos cangaceiros, tamanha é a identidade do substrato humano, embora diferentíssimas e extremadas as maneiras de sua exteriorização: resistência física, frugalidade, bravura, pertinácia. Mas, os fatores naturais não bastam, como razão da persistência do fenômeno e da quase total ineficiência dos meios empregados para neutralizar a sua ação maléfica.
Eis porque dissemos que predominam os fatores sociais.
Primeiro a se impor à meditação demorada dos nossos estadistas (?) é o abandono em que vive aquela brava gente nordestina, lutando contra as secas periódicas, cujo influxo psicológico é muito maior do que geralmente se pensa. Seria interessantíssimo o estudo minudente, percuciente, desse influxo, que revelaria a origem de muitos fatos tidos por incompreensíveis.
Palpar-se-ia, por exemplo, o fundamento da descrença dominante naquelas regiões, em relação a tudo que diz provir do Governo, entidade somente concebida – segundo boa observação do representante baiano Francisco Rocha – como “sinônimo de mentira”. (Anais da Assembleia Constituinte – vol. XII, pág. 535). Desprovido da assistência do Estado, desde a escolar até a higiênica, o habitante daquela zona é o menos próprio a confiar nas garantias do poder público.
O inegável abandono em que o deixam destrói os seus estímulos de solidariedade com os detentores desse poder, na repressão do banditismo. Há sob tal aspecto, grande semelhança entre esse sentimento negativo dos nossos infelizes patrícios e o que nutriam os montanheses da Calábria, da Serra Morena e da Falperra, ao sul da Europa. Também lá se notava, deploradamente, a escassa ou nenhuma colaboração dos honestos nas atividades policiais, ao ponto de preferirem aqueles manter relações com os salteadores, a ajudarem a tarefa do saneamento social, pela repressão.
Era que lá, como aqui, o poder público nem sempre se recomendava nas pessoas dos seus servidores, e, agindo de longe, nem sempre procedia com isenção e justiça.
- Assim chegamos, sem esforço, a vislumbrar outra causa do fenômeno, mais de uma vez acentuada: a maldita intervenção da politicalha de campanário. Em regra, não passam, ali, as dissensões partidárias de verdadeiras dissensões familiares, resíduos de velhas rixas pessoais, alimentadas, anos e anos, por toda sorte de afrontas e picardias, exercidas de uma e da outra parte, conforme a elevação política dos protetores graduados de cada grupo. No tempo do Império era esta uma das mais ferinas pirraças: valiam-se os politicários da circunstância de estarem seus protetores no poder e promoviam o recrutamento, para o Exército, dos parentes e aderentes dos seus adversários.
Das rixas partidárias passava-se – e ainda se passa – para as vinditas sangrentas, armando-se braços mercenários.
Ora, esses braços têm de ser, necessariamente, protegidos, amparados, acoitados. E do hábito de “trabalhar por conta alheia” lhes vem a tendência para “trabalhar por conta própria”, não só atacando pessoas, como se apropriando de bens, disto fazendo “meio de vida”, mais ou menos seguros da continuidade da proteção daqueles seus antigos patrões, interessados, igualmente, em guardar a velha aliança, selada com o sangue das suas vítimas. Tamanho é o entrelaçamento do Cangaço e da politicalha que até hoje não foi, a sério, desmentido o boato segundo o qual Lampião, em dada época, teria sido governamentalmente aproveitado para combater contra forças rebeldes!
Outra causa da persistência do Cangaço reside no mau comportamento de alguns troços policiais, quando, de um para outro Estado, marcham em perseguição dos bandos criminosos. Mormente no que respeita a Bahia e a Sergipe – provavelmente em razão da conhecida contenda de limites – registram-se fatos deveras lamentáveis, e dos quais obtivemos mais de um fidedigno informe.
A entrada de uma força da polícia baiana no encalço de bandoleiros era (pelo menos até 1932) motivo de terror para os sertanejos sergipanos, porque a atitude dos policiais não divergia, essencialmente, da atitude daqueles a quem eles perseguiam, no tocante ao desrespeito à propriedade, à honra das mulheres e à própria vida dos habitantes. Pretexto para todo gênero de violências era a acusação de “coiteiro” , não se admitindo, contra ela, qualquer justificativa. Em aparecendo indícios do trânsito dos nômades criminosos por determinado lugarejo, ou de haverem eles estado em contato com este ou aquele indivíduo, não se indagava em que condições os fatos tinham ocorrido. Usavam-se, ao princípio, admoestações intimidadoras, e, se não logravam êxito, logo se empregavam, para arrancar indicações, vários meios de tortura. Se, ainda assim, nada se conseguia, desabavam, sobre os supostos ou reais coiteiros, tremendos castigos, desde o incêndio das suas moradias, até a sua eliminação, “com ou sem o auto de resistência”.
Outrossim, pelo que ouvimos, nada têm de extraordinário situações dramáticas, de fundo sentimental, como a que José Américo acolheu no seu romance. Mas, além dos acoitamentos de origem afetiva, outros se oferecem a atenção de quem viaja, com intuitos de simples observador, e sem pretender forçar a significação dos fatos.
(...) vaqueiros, agricultores e criadores de (...), agregados, pequenos comerciantes, mascates, etc. – fácil é conceber o que com eles se passa, quando têm a desventura de topar com cangaceiros. Ficam positivamente (...) pelo pavor. Se são incumbidos – o que sucede frequentemente – de buscar para os salteadores, em lugares mais ou menos próximos, aquilo de que eles carecem no momento – comestíveis, pólvora, balas, fumo, cachaça – e de colocar as encomendas em pontos designados, longe de vistas indiscretas, cumprem, a risca, o que lhes é ordenado, e não ousam desobedecer a recomendação suprema, a de não denunciar a passagem dos criminosos.
Quem, em boa fé, atirará a pedra acusatória contra esses que, subitamente, se esquecem de tudo – semblantes dos homens, suas vestes, suas -, e, principalmente, a direção que tomaram?
Quem quereria, de livre vontade, entregar-se em holocausto à Deusa Justiça, traindo os salteadores, e, por isto mesmo, ficando sujeito à sua infalível?
Quanto aos
grandes – os latifundiários, senhores de fazendas e engenhos – aos quais se
imputa, não raramente, a culpa de acoitamentos, é necessário ouvi-los antes de
os condenar, mesmo moralmente.
Não dissimulamos que, entre eles, existem alguns da espécie a que já nos referimos, amorais aproveitadores de braços assassinos, presos aos cangaceiros por serviços anteriormente prestados, como executores, que estes foram de seus mandatos criminosos.
Dos desta espécie, entretanto, não cogitamos, agora, porque eles não são, propriamente, “acoitadores de cangaceiros”, mas, sim, protetores habituais dos seus antigos capangas, no seu interesse pessoal e direto de mandantes de crimes, cometidos por motivos familiares ou políticos. Os outros – constituindo o maior número – justificam-se de não denunciar os bandoleiros, quando têm notícias da sua passagem, alegando: - primeiro, que não se lhes fornece suficiente segurança de pessoas e bens, de modo a livrá-los de represálias, por parte dos sequazes dos bandidos, por ventura capturados ou mortos; segundo, que fora preciso, para eficácia do concurso deles, que houvesse firme solidariedade entre todos, decididamente dispostos a prestigiar o poder público na repressão ao Cangaço. Não existe, porém, a reclamada segurança, nem a imprescindível solidariedade entre fazendeiros e usineiros, separados por mesquinhas rivalidades partidárias, ou pelo entrechoque de interesses mercantis. Se é verdade que alguns se mostram propensos a contribuir para a destruição do Cangaço, não é menos certo que outros preferem transigir com os cangaceiros, por diferentes motivos, sendo preponderante o sossego de que gozam, tendo poupado o seu gado, o seu pessoal e as suas plantações.
Perguntar-se-á, talvez: Qual o remédio para essa calamidade, que tanto dura (...) tão deplorável como desnecessária?
Um único remédio se nos depara e de fácil aplicação. Foi proposto pelo deputado cearense Xavier de Oliveira, notável psiquiatra e atilado sociólogo.
Consiste no acantonamento de tropas do Exército – cuidadosamente selecionados, e compostas, em sua maioria, por elementos provindos do sertão nos Estados onde se tornou endêmica e tão malsinada forma de banditismo. Vários efeitos benéficos derivariam da indicada providência.
Aumentaria, desde logo, a segurança das populações ameaçadas, constantemente, pelas investidas do Cangaço. Ocupar-se-ia parte das tropas, ativamente, do preparo de novas vias de comunicação, assim reduzindo os refúgios das “caatingas” que seriam, a pouco e pouco, desbastadas. Fundar-se-iam, nos quartéis, escolas de ensino primário e profissional, para menores e adultos, incutindo-se lhes com o ensino, hábitos de asseio e conforto, finalmente, a simples presença das forças do Exército, devidamente disciplinadas, impediria os abusos das polícias estaduais, quando movidas por impulsos regionais.
Reapareceria a confiança no Governo, que desde muito, desertos das almas sertanejas. Consequentemente, perderiam os bandoleiros um dos seus pontos de apoio: o indiferentismo dos honestos, que então, formariam nas fileiras dos defensores da ordem pública, sem receio, de represálias. E fossem quais fossem os sacrifícios da União Federal com o acantonamento das tropas e os melhoramentos correlatos – abertura de estradas e instalação de novas linhas telegráficas – teriam farta compensação. Extinta uma vergonha nacional, perduraria, além disto, a obra educativa do Exército, no seio daquelas populações tão injustamente abandonadas.
Antônio
Evaristo de Morais (Rio de Janeiro, 26 de outubro de 1871 - 30 de junho de 1939) foi um rábula e advogado criminalista, e historiador brasileiro. Wikipédia.
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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