Por Texto: Tatiana Notaro | Fotos: Rafael Furtado
PETROLINA E
SERRA TALHADA (PE) - Andrelino passeia os olhos pelas cabeças do bando
de cangaceiros que fora decapitado naquela manhã de 28 de julho de
1938 em busca de Lampião - o maior de todos os líderes do
cangaço, de quem mais se teve notícia e que a história conta ter sido morto
neste dia, 80 anos atrás. Uma a uma, repassa todas as cabeças, calado, e não
encontra a de Virgolino Ferreira da Silva. “Ele não está aí”, cochicha
para um soldado responsável pela escolta, que devolve o olhar desconfiado.
Único ainda vivo entre os policiais que integraram as tropas volantes,
entre 1922 e 1938, Andrelino Pereira Filho, 104 anos, tem suas próprias
memórias sobre uma época em que o combate ao cangaço transformou,
para sempre, a Polícia Militar de Pernambuco.
Entre 1927 e 1928, com o então governador Estácio Coimbra e o secretário
de Segurança Eurico de Souza Leão baixam em Pernambuco a chamada Lei
do Diabo, que autorizava punições mais severas aos coiteiros (aqueles que acobertavam
cangaceiros, por vontade própria ou sob ameaças). Vê-se uma polícia apoiada por
um governo que quer que Pernambuco deixe de ser a “terra de Lampião”.
De fato, o líder cangaceiro deixa o Estado em julho de 1928, fazendo
por aqui, depois disso, apenas “missões de rapina”.
Mas na década de 1920, a polícia tinha cerca de 800 homens localizados,
majoritariamente, no Litoral e na Zona da Mata pernambucanos. Não
tinham treinamento e, no começo, sabiam de coisa alguma:
roupas, técnicas de combate e de rastreamento e o armamento –
tudo era inadequado para a missão. Mas as ordens do Governo teriam que ser
seguidas e para Andrelino, assim como para outros membros das tropas
volantes que atuaram aqui e em estados vizinhos com a mesma missão de
expurgar bandos de cangaceiros, não havia escolha. Morriam, matavam.
Falando em
morte, as modalidades de crimes que Lampião e seu bando começaram
a executar - estupros, sequestro e extorsão -
motivavam o combate. Conta o historiador André Carneiro, autor de “Capitães
do Fim do Mundo”, que a área de atuação de Lampião na Região Nordeste era de 29
mil quilômetros quadrados (km²). “Imagine isso em um sertão de rara tecnologia,
sem telégrafo, onde não existe telefone, não existe carro”, diz Carneiro. Mas
a caatinga é um dos locais mais hostil para sobrevivência humana
da América Latina e os homens do litoral entraram em choque.
“Perceberam que para caçar um lobo, era preciso outro lobo”, continua o
historiador, e a Polícia começa a alistar sertanejos, os “inimigos
fraternais” dos cangaceiros. “Você vai ver o policial mudar suas vestes, sua
prática. Vai aprender com o inimigo como deslocar, localizar, perseguir e
lutar. Deixa de ser uma polícia mais fixa, dos destacamentos, e se torna uma
polícia volante, que se mobiliza. Lampião que modifica isso”.
A caçada usava sinais do ar, do ambiente, o rastreamento era (como
ainda é) essencial. Práticas foram sendo modificadas, como as orelhas
decepadas que dão lugar a cabeças arrancadas e usadas como prova da morte
dos cangaceiros. “Imagine uma tropa de soldados maltrapilhos, estropiados,
seminus que chegavam carregando orelhas como prova da morte de cangaceiros.
Em quem você ia acreditar? Começaram a ver que orelha não funcionava: vamos
arrancar a cabeça. Precisavam mostrar que eram mais fortes que os cangaceiros”,
relembra André Carneiro.
Na década de
1990, o policiamento do Interior de Pernambuco passa a enfrentar uma
onda de criminalidade e precisa ser reforçado pela Companhia
Independente de Operações Especiais (CIOE, hoje Batalhão de Operações
Especiais, Bope). “A causa eram as brigas entre famílias e a cultura
da droga começou como uma forma de financiar isso. Mas o que era
meio, acabou se tornando fim, e veio o tráfico de drogas, precisamente o
plantio de maconha, e o assalto a banco”, diz Jamerson Lira, coronel
da Diretoria Integrada do Interior II, que atua de Arcoverde a Petrolina.
O CIOE traz o reforço policial, mas não faz nada específico na caatinga,
além de enfrentar as dificuldades logística (da Capital para o Sertão) e tática
(havia o conhecimento técnico policial, mas não da região). “Foi a partir daí
que se percebeu que era necessária uma polícia específica na área, era
necessário o sertanejo com conhecimento do terreno, com rusticidade. Fomos
buscar a influência das tropas volantes”, diz o coronel.
Testemunha do tempo
Nascido em Cabrobó, Sertão pernambucano, em 18 de março de 1914, seu Andrelino jamais pensou que fosse viver tanto. Tornou-se volante porque, sem emprego, o jeito foi entrar para a polícia; mas quando entrou, não sabia que faria parte de uma tropa volante que entraria no Sertão em busca de cangaceiros. “Acabei lá. Quando convocaram, pensei em nada, só que ia pro Sertão e fui, calado”.
Os soldados andavam
em grupos de sete, mais um comandante, e a tropa de Andrelino ficou
pelas bandas de Alagoas (era época de ditadura, a de Getúlio Vargas, então a
polícia comandava onde fosse necessário). Foram dois anos “andando no mato,
dormindo no mato, vivendo o mato” - “dentro da caatinga de 1936 a 1938”.
Diz a história que cangaceiro tinha um cheiro peculiar, uma mistura de perfume
ou água de colônia com suor, que acabava ajudando no rastreamento, como
contra André Carneiro em “Capitães do Fim do Mundo”. “Mas não era uma certeza,
era uma pista casual, acontecia. Só eles usavam, mas a gente, não. Se os
encontrasse, bem; se não, seguíamos. Mas rezava pra não encontrar”, continua o
ex-volante.
Sem descanso, sem comida, sem água, as volantes seguiam nessa
missão ingrata; “ingrata” porque o pagamento era também escasso. “Comida
era quando encontrava. Farinha, rapadura, queijo de coalho, se
tivesse. Água, só quando encontrava um poço. Sobre banho, nunca se falou”.
As armas eram fuzis e o volante carregava, em média 50 balas que
“pesavam como o diabo”, e nessa rotina dura, seu Andrelino diz que teve uma
aliada: a calma. “Foi a primeira coisa que aprendi. A segunda foi a
conviver; a terceira, foi ‘não atender a muita gente, a não dar atenção’. Se o
camarada atende a muitas perguntas, passa o tempo todo. Eu preferia ficar
em silêncio”.
As tropas não
tinham treinamento, mas orientações de como se defender se encontrassem um
bando. “Mas essa orientação era no momento. Estava no tiroteio e se os tiros
apertassem, eu seguia a ordem: me jogava no chão”. Andrelino nunca ficou ferido
(mas quase foi), nunca matou ninguém, nunca viu um de seus companheiros de
tropa matando.
“O pagamento, eu não sei nem dizer como era. Eu lembro que a gente recebia, que
tinha um sargento que era o pagador, Almeida, trazia tudo separado. Ele trazia
o pacotinho de dinheiro. A gente chegava em uma bodega, fazia compras.
Pronto, e o dinheiro desaparecia”. Não havia heroísmo, mas uma obrigação;
não havia um intuito de fazer justiça, de trazer um bem social, mas uma vontade
enorme de trabalhar para que o dia em que aquelas volantes terminassem
chegasse logo.
Os coiteiros também davam pistas dos cangaceiros. Certo dia, diz
seu Andrelino, foi o perfume de uma mocinha, numa casa, que entregou a presença
de um bando. “Os cangaceiros estavam em uma distância de uns 500
metros e cozinhando um bode numa lata amarrada num pé de pau em cima de um fogo
de lenha. Estava fervendo. A mocinha quis negar, mas terminou dizendo. Os cangaceiros deram
fé e fugiram. Deixaram a lata fervendo lá. Ninguém comeu, quem sabia se não
tinham colocado veneno?”.
Medo, seu Andrelino nunca sentiu, embora tenha visto e sentido muita coisa.
Sentia, mas não podia falar porque, afinal, estavam todos do mesmo jeito.
Alívio e alegria sentiu quando soube que a volante tinha terminado e
ele seria deslocado para o Recife, onde faria serviços bem mais leves. “As
roupas da volante eram de tecido grosso, feitas de todo jeito; no Recife,
fizeram sob medida. Mas as duas eram cáqui e eu não uso mais cáqui desde que
saí da polícia em 1966”.
Andrelino conheceu Lampião quando era menino. “Ele ia lá em casa,
tomou café lá muitas vezes. Chamava minha mãe: ‘cumade’, tem um cafezinho?”.
Tomava e ia embora”. E com seus 104 anos e sua memória reta, seu Andrelino
defende uma tese diferente para a morte de Lampião. Ele ri da oficial - que Virgolino
foi morto em uma emboscada em 1938, em Angico, Sergipe - e diz que tem certeza
que o cangaceiro jamais morreria daquela forma. “Lampião morreu
em Minas Gerais, na fazenda São Francisco, muitos anos depois, em 1963,
justamente neste mês que estamos, de julho, mas eu não sei a data exata”.
“Um amigo dele, de Lampião, era amigo meu, um senhor de Porção (cidade do
interior de Pernambuco). Tinha trabalhado com ele. Eu estava em Pesqueira
(outra cidade pernambucana, localizada no Agreste), engraxando sapato, quando
ele passou e falou: ‘sabe de onde eu venho? De Minas Gerais, do enterro de
Lampião’. O que, homem?! Lampião morreu? Era mês de setembro. Eu já sabia que
ele estava na fazenda São Francisco. As coisas passam no meio do mundo e a
gente sabe”.
Volantes modernas
A
especialização é necessária, defende o coronel Jamerson Lira, porque os atores
dos crimes migram se for preciso. Hoje, a criminalidade está interligada em
âmbito nacional e o estado que tiver um policiamento fraco é o que vai ser mais
visitado pelos bandidos.
Depois que Pernambuco foi pioneiro no policiamento especializado para
a caatinga, em 1997, Bahia, Paraíba, Ceará, Alagoas e Sergipe tomaram
mesma iniciativa. “Em 2012, 2013, recomeçaram os assaltos, agora com nova
roupagem, a de explosões de carro-forte, de banco. Aconteciam muitas fugas por
dentro da caatinga e os bandidos sempre levavam vantagem. Fizemos um reforço
no treinamento, batendo muito na questão do rastreamento. Já fomos,
inclusive, requisitados para o Piauí”, explica o coronel.
Ciosac, atual Bepi: inspiração nas volantes que combateram o cangaço para enfrentar criminalidade no Sertão pernambucano - Foto: Rafael Furtado/ Folha de Pernambuco
A Companhia
Independente de Operação e Sobrevivência na Caatinga (Ciosac)
evoluiu, devido à sua importância, e virou o Batalhão Especial de Policiamento
do Interior (Bepi) - embora a antiga sigla persista. “Com as demandas,
inclusive fora do ambiente de Sertão, viu-se a necessidade de estender a
atuação. Virou Bepi porque na Zona da Mata não tem caatinga, mas temos as
companhias de operações específicas”.
O nível de exigência tática, física e emocional é grande para integrar o
Bepi e isso, diz o capitão Francisco Barbosa, justifica que o aproveitamento
das turmas de formação fique na casa dos 40%. “Quando vamos para uma operação e
não temos como levar a logística, a maior dificuldade é o efeito do sol e a
falta da água. A gente tem nossas medidas paliativas e o próprio bandido já tem
as suas também. Quando eles sabem onde vão agir, têm planejamento. Já
encontramos garrafas pet espalhadas pela caatinga, porque eles vão saber
que se entrarem por ali, vão ter onde achar água”, explica o coronel
Jamerson. Nas suas incursões, os policiais do Bepi podem levar de 20 a 30 kg de
sobrepeso: munição, água, mochila e comida - a
mesma farinha que também alimentava as tropas volantes.
Não era vingança, era negócio
Historiador, André Carneiro descreve Lampião como “alguém extremamente
cruel, violento” responsável por mais de 200 estupros cometidos por
seus bandos. Incendiava fazendas, chegou a dizimar 3 mil cabeças gado durante
os anos em que atuou fortemente. “Com Lampião, o cangaço vira ‘um negócio’. Ele
mesmo disse isso em entrevista ao jornal O Ceará, em 1926. Ele transforma
o cangaço-vingança em um meio de vida”, explica.
Pouca gente sabe, diz o historiador, mas o sertão Pernambucano do
período Lampiônico vai de 1922 a 1938, quando temos mais de 40
bandos de cangaceiros em atuação. Lampião era um forte, quase
imbatível, mas começa a esmorecer em 1927, quando concorda com um ataque à
cidade de Mossoró (RN) e o seus planos dão errado. “Quando se está ganhando,
todos estão ao seu lado; quando você perde, as pessoas começam a ter medo de se
associar a você”, comenta André. “O cangaço é um empreendimento que
gera lucro não só pro cangaceiro, mas para o coiteiro. E Lampião sem
o coiteiro não é nada”.
Mas em se tratando da morte de Lampião, é importante pensar porque ele
começa a ser vencido. Para André Carneiro, o líder cangaceiro é
golpeado pelo tempo, por seu aburguesamento, por sua vaidade, e pelo progresso.
“Um homem de 22 anos lá no início do cangaço, já estava próximo aos 40 anos em
1938. Ele já não tem a mesma vitalidade. A entrada de mulheres muda muito a
rotina, porque o bando perde a sua virulência, Lampião se aburguesa,
passa mais tempo parado. E quando o progresso vai se aproximando, ele vai se
enterrando cada vez mais em um sertão inóspito, que é onde o cangaço ainda
funcionava”.
A vaidade
também foi uma forma de morte para ele, que permite ser registrado pelo
fotógrafo Benjamim Abrahão. “E se você observar o ano, estamos vivendo a
ditadura no Brasil. Seria inadmissível para o governo Vargas permitir um ‘rei
cangaceiro’ que não fosse combatido. Isso foi fatal. Segundo rumores, um
tenente que era amigo de Lampião recebeu um aperto do governo do
Estado: ou o matava ou perderia a carreira”, conta André.
A morte de Lampião
André Carneiro, em “Capitães do Fim do Mundo”, registra que a história oficial
conta que Lampião foi morto por uma volante de “caráter
duvidoso”, por um oficial que não tinha histórico de combate no cangaço.
“Ele foi morto onde até uma criança poderia acertá-lo, em Angico”, diz.
Há também quem acredite que Lampião foi morto por envenenamento.
“Oras, um homem que passou 16 anos no cangaço comandando diversos bandos, e em
nenhum combate perdeu mais de seis homens. Chegou a enfrentar tropas com mais
de 290 homens, em Serra Grande, com 100 cangaceiros à disposição. E como é que
você explica que em uma manhã ele perder mais de 10 homens?”, argumenta.
A teoria é que policiais de Alagoas teriam conseguido envenenar a
refeição - algo extremamente repudiado na luta entre policiais e cangaceiros,
pela covardia. “Existe um código de honra entre esses homens. Envenenar
um manancial de água, como aconteceu em outras situações da história, não
acontecia aqui. O policial não fazia isso, nem os cangaceiros. E vários
policiais de Pernambuco morreram defendendo isso”.
A morte de Lampião é cercada de mistérios porque o discurso que se
sobressai é de quem o matou. Essa interrogação, a história não vai conseguir
responder. Aliás, mistérios não faltam acerca desse personagem. O discurso que
ele entrou no cangaço para vingar a morte dos pais é, dizem alguns
historiadores, “totalmente falacioso”: a família responsável por essas brigas,
os Saturninos, ficou vivendo em uma tapera em Serra Talhada por toda a vida.
Adendo - http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Postei para o conhecimento dos amigos cangaceirólogos a história deste senhor que já é do conhecimento de todos. Uma história meio duvidosa.
https://www.folhape.com.br/noticias/lampiao-e-a-cacada-que-mudou-a-policia-militar-de-pernambuco/76258/
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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