“Detesto tudo que oprime o homem, inclusive a gravata.”
Mulher, poesia, música
Clarice Lispector – Vinicius, acho que vamos conversar sobre mulheres, poesia e
música. Sobre mulheres porque corre a fama de que você é um grande amante.
Sobre poesia porque você é um dos nossos grandes poetas. Sobre música porque
você é o nosso menestrel. Vinicius, você amou realmente alguém na vida?
Telefonei para uma das mulheres com que você casou, e ela disse que você ama
tudo, a tudo você se dá inteiro: a crianças, a mulheres, a amizades. Então me
veio a ideia de que você ama o amor, e nele inclui as mulheres.
Vinicius de Moraes – Que eu amo o amor é verdade. Mas por esse amor eu
compreendo a soma de todos os amores, ou seja, o amor de homem para mulher, de
mulher para homem, o amor de mulher por mulher, o amor de homem para homem e o
amor de ser humano pela comunidade de seus semelhantes. Eu amo esse amor mas
isso não quer dizer que eu não tenha amado as mulheres que tive. Tenho a
impressão que, àquelas que amei realmente, me dei todo.
Clarice Lispector – Acredito, Vinicius. Acredito mesmo. Embora eu também
acredite que quando um homem e uma mulher se encontram num amor verdadeiro, a
união é sempre renovada, pouco importam as brigas e os desentendimentos: duas
pessoas nunca são permanentemente iguais e isso pode criar no mesmo par novos
amores.
Vinicius de Moraes – É claro, mas eu ainda acho que o amor que constrói
para a eternidade é o amor paixão, o mais precário, o mais perigoso, certamente
o mais doloroso. Esse amor é o único que tem a dimensão do infinito.
Clarice Lispector – Você já amou desse modo?
Vinicius de Moraes – Eu só tenho amado desse modo.
Clarice Lispector – Você acaba um caso porque encontra outra mulher ou
porque se cansa da primeira?
Vinicius de Moraes – Na minha vida tem sido como se uma mulher me
depositasse nos braços de outra. Isso talvez porque esse amor paixão pela sua
própria intensidade não tem condições de sobreviver. Isso acho que está
expresso com felicidade no dístico final do meu soneto “Fidelidade”: “que não
seja imortal posto que é chama / mas que seja infinito enquanto dure”.
Clarice Lispector – Você sabe que é um ídolo para a juventude? Será que
agora que apareceu o Chico, as mocinhas trocaram de ídolo, as mocinhas e os
mocinhos?
Vinicius de Moraes – Acho que é diferente. A juventude procura em mim o
pai amigo, que viveu e que tem uma experiência a transmitir. Chico não, é ídolo
mesmo, trata-se de idolatria.
Clarice Lispector – Você suporta ser ídolo? Eu não suportaria.
Vinicius de Moraes – Às vezes fico mal-humorado. Mas uma dessas moças
explicou: é que você, Vinicius, vive nas estantes de nossos livros, nas canções
que todo mundo canta, na televisão. Você vive conosco, em nossa casa.
Clarice Lispector – Qual é a artista de cinema que você amaria?
Vinicius de Moraes – Marilyn Monroe. Foi um dos seres mais lindos que já
nasceram. Se só existisse ela, já justificaria a existência dos Estados Unidos.
Eu casaria com ela e certamente não daria certo porque é difícil amar uma
mulher tão célebre. Só sou ciumento fisicamente, é o ciúme de bicho, não tenho
outro.
Clarice Lispector – Fale-me sobre sua música.
Vinicius de Moraes – Não falo de mim como músico, mas como poeta. Não s
eparo a poesia que está nos livros da que está nas canções.
Clarice Lispector – Vinicius, você já se sentiu sozinho na vida? Já sentiu
algum desamparo?
Vinicius de Moraes – Acho que sou um homem bastante sozinho. Ou pelo menos
eu tenho um sentimento muito agudo de solidão.
Clarice Lispector – Isso explicaria o fato de você amar tanto, Vinicius.
Vinicius de Moraes – O fato de querer me comunicar tanto.
Clarice Lispector – Você sabe que admiro muito seus poemas, e, mais do que
gostar, eu os amo. O que é a poesia para você?
Vinicius de Moraes – Não sei, eu nunca escrevo poemas abstratos, talvez
seja o modo de tornar a realidade mágica aos meus próprios olhos. De envolvê-la
com esse tecido que dá uma dimensão mais profunda e consequentemente mais bela.
Clarice Lispector – Reflita um pouco e me diga qual é a coisa mais
importante do mundo, Vinicius?
Vinicius de Moraes – Para mim é a mulher, certamente.
Clarice Lispector – Você quer falar sobre sua música? Estou escutando.
Vinicius de Moraes – Dizem, na minha família, que eu cantei antes de falar. E havia uma cançãozinha que eu repetia e que tinha um leve tema de sons. Fui criado no mundo da música, minha mãe e minha avó tocavam piano, eu me lembro de como me machucavam aquelas valsas antigas.
– Meu pai também tocava violão, cresci ouvindo música. Depois a poesia fez o resto.
Fizemos uma pausa. Ele continuou:
– Tenho tanta ternura pela sua mão queimada...
(Emocionei-me e entendi que este homem envolve uma mulher de carinho.) Vinicius disse, tomando um gole de uísque:
– É curioso, a alegria não é um sentimento nem uma atmosfera de vida nada
criadora. Eu só sei criar na dor e na tristeza, mesmo que as coisas que
resultem sejam alegres. Não me considero uma pessoa negativa, quer dizer, eu
não deprimo o ser humano. É por isso que acho que estou vivendo num movimento
de equilíbrio infecundo do qual estou tentando me libertar. O paradigma máximo
para mim seria: a calma no seio da paixão. Mas realmente não sei se é um ideal
humanamente atingível.
Clarice Lispector – Como é que você se deu dentro da vida diplomática,
você que é o antiformal por excelência, você que é livre por excelência?
Vinicius de Moraes – Acontece que detesto tudo o que oprime o homem,
inclusive a gravata. Ora, é notório que o diplomata é um homem que usa gravata.
Dentro da diplomacia fiz bons amigos até hoje. Depois houve outro fato: as raízes
e o sangue falaram mais alto. Acho muito difícil um homem que não volta ao seu
quintal, para chegar ou pelo menos aproximar-se do conhecimento de si mesmo.
Clarice Lispector – Como pessoa, Vinicius, o que é que desejaria alcançar?
Vinicius de Moraes – Eu desejaria alcançar outra coisa. Isso de calma no
seio da paixão. Mas desejaria alcançar uma tal capacidade de amar que me
pudesse fazer útil aos meus semelhantes.
Clarice Lispector – Quero lhe pedir um favor: faça um poema agora mesmo.
Tenho certeza de que não será banal. Se você quiser, Menestrel, fale o seu
poema.
Vinicius de Moraes – Meu poema é em duas linhas: você escreve uma palavra em cima e a outra embaixo porque é um verso.
É assim:
Clarice
Lispector
– Acho lindo o teu nome, Clarice.
Clarice Lispector – Você poderia dizer quais as maiores emoções que já
teve? Eu, por exemplo, tive tantas e tantas, boas e péssimas, que não ousaria
falar delas.
Vinicius de Moraes – Minhas maiores emoções foram ligadas ao amor. O
nascimento de filhos, as primeiras posses e os últimos adeuses. Mesmo tendo
duas experiências de quase morte – desastre de avião e de carro – mesmo essa
experiência de quase morte nem de longe se aproximou dessas emoções de que te
falei.
Clarice Lispector – Você se sente feliz? Essa, Vinicius, é uma pergunta
idiota, mas que eu gostaria que você respondesse.
Vinicius de Moraes – Se a felicidade existe, eu só sou feliz enquanto me
queimo e quando a pessoa se queima não é feliz. A própria felicidade é
dolorosa.
Meditamos um pouco, conversamos mais ainda, Vinicius saiu.
Então telefonei para uma das esposas de Vinicius.
Clarice Lispector – Como é que você se sente casada com Vinicius?
Ela respondeu com aquela voz que é um murmúrio de pássaro:
– Muito bem. Ele me dá muito. E mais importante do que isso, ele me ajuda a
viver, a conhecer a vida, a gostar das pessoas.
Depois conversei com uma mocinha inteligente:
– A música de Vinicius, disse ela, fala muito de amor e a gente se identifica
sempre com ela.
Clarice Lispector – Você teria um “caso” com ele?
– Não, porque apesar de achar Vinicius amorável, eu amo um outro homem. E
Vinicius me revela ainda mais que eu amo aquele homem. A música dele faz a
gente gostar ainda mais do amor. E “de repente, não mais que de repente”, ele
se transforma em outro: e é o nosso poetinha como o chamamos.
Eis pois alguns segredos de uma figura humana grande e que vive a todo risco.
Porque há grandeza em Vinicius de Moraes.
VINICIUS DE
MORAES – Poeta, assumiu postos diplomáticos em Los Angeles, Paris e Roma.
Tornou-se um dos compositores mais populares da MPB, e um dos integrantes da
Bossa Nova. Colaborou com vários jornais e revistas, como articulista e crítico
de cinema. Escreveu Orfeu da Conceição, que teve montagem teatral em 1956, com
cenários de Oscar Niemeyer. Posteriormente transformada em filme (com o
título de Orfeu negro) pelo diretor francês Marcel Camus, em 1959, foi premiada
com a Palma de Ouro no Festival de Cannes e com o Oscar, em Hollywood, como o
melhor filme estrangeiro do ano. Nesse filme acontece seu primeiro trabalho
com Tom Jobim. Entre seus parceiros estão Carlos Lyra, Edu
Lobo, Francis Hime, Dorival Caymmi, Baden Powell e Toquinho. Entrevistas
realizadas por Clarice Lispector, entre maio de 1968 e outubro de 1969.
Fonte:
- LISPECTOR, Clarice. Clarice Lispector entrevistas. Rio de Janeiro: Rocco,
2007.
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