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segunda-feira, 16 de julho de 2012

AS CRÔNICAS DO CANGAÇO – 17 (ESCRITOS, MENTIRAS E DIFAMAÇÕES)

Por: Rangel Alves da Costa
Rangel Alves da Costa

AS CRÔNICAS DO CANGAÇO – 17 (ESCRITOS, MENTIRAS E DIFAMAÇÕES)

Durante muitos anos o cangaço foi visto como fenômeno ilegítimo de rebeldia, insurgência contra os poderes constituídos, uma verdadeira facção criminosa. Tido e visto no contexto do banditismo social, foi amplamente relegado ao plano da covardia e frieza assassina de seus agentes, os cangaceiros. Mais correto seria afirmar, como fez Rui Facó no livro “Cangaceiros e Fanáticos”, que a violência cangaceira era uma resposta à violência social.

Muitos viam nos cangaceiros uma patologia criminógena cujas raízes estavam na condição social, no estágio da evolução psíquica e cultural, na brutalidade animalesca propiciada pela terra inóspita e no caráter selvagem presente naqueles sertanejos. Quer dizer, preconceituosamente afirmavam que a delinquência era natural ao cangaceiro, vez que o meio o condicionava a esse estado animalesco.

Tal viés preconceituoso objetivava, de um lado, acobertar a inoperância e negligência do Estado no combate aos desmandos coronelistas que se alastravam pelos rincões nordestinos, bem como as injustiças derramadas como água fervente pelos próprios governos contra as classes menos favorecidas, e de outro na tentativa de desqualificar a força organizacional do cangaço enquanto instrumento de luta.


Desse modo, por muito tempo a historiografia oficial desqualificou como pôde o fenômeno cangaço, citando Lampião como reles delinquente, um chefe de criminosos, salteadores e vis bandoleiros, enquanto os seus cangaceiros não passavam de uma tropa de matutos e ignorantes sanguinários, despejando suas bestialidades contra os próprios conterrâneos. Pouco se fala das atrocidades das volantes e de suas práticas mais comuns: assassinatos de inocentes, falsas acusações para escusos proveitos, covardias em todos os sentidos.

Dessa verdadeira política de desconfiguração conceitual, de busca a todo custo de transformar o cangaço num reles banditismo e, consequentemente, tornar figuras como Lampião, Maria Bonita, Corisco, Adília, Zé Sereno, Cajazeira e Zabelê, dentre tantos outros, em eternos réus no tribunal da história, é que o Nordeste, palco e berço desses cangaceiros, logo passou a contradizer o que falsamente andavam espalhando pelos quatro cantos. Mas nunca foi fácil impor a verdade diante de distorções históricas.

Até hoje as opiniões se dividem acerca do cangaço. Muitos, talvez leitores dos historiadores da desconstrução, ou até mesmo porque acabam fazendo do preconceito ao povo nordestino a razão do seu pensamento, ainda têm o cangaço como um grupo de bandoleiros, frios assassinos, que outra coisa não fazia senão sair por todo a região matando gente inocente, desvirginando mocinhas e ferrando bochechas rosadas. Nesse contexto, somente uma revisão na literatura cangaceira para dar outros e verdadeiros contornos ao fenômeno.

Muito já havia sido escrito sobre o cangaço, não só abordando o grupo de Lampião como os outros que o antecederam. Contudo, geralmente da lavra de escritores nordestinos, dificilmente as obras ultrapassavam fronteiras. Tais escritos não alcançaram a divulgação, por exemplo, do livro “Lampião – O Rei dos Cangaceiros”, escrito pelo norte-americano Billy Jaynes Chandler, e que se tornou um clássico generalista sobre o tema.

Clássico porque possibilitou uma ampla abordagem sobre o fenômeno, de forma sistemática, acadêmica e conceitual, ainda que em grande parte baseado nas reportagens publicadas à ocasião pelos jornais. No livro, Chandler examina a trajetória de Lampião, da infância em Vila Bela, Pernambuco, até a morte em Angicos, separando fatos da ficção e colocando o cangaço no contexto de um sertão onde, à época, tal opção de luta soava com naturalidade para um povo afligido pela pobreza e pelas injustiças dos governantes.

Verdade é que depois dos primeiros escritos, e quase todos numa época recente à chacina da Gruta de Angico de 38 e o fim do cangaço, pouco se produziu de importante sobre o tema. Contudo, a partir da década de 80 o que se vê é uma retomada sem precedentes das pesquisas, das revisões de literatura, das entrevistas e estudos de campo. Como consequência, o surgimento de uma imensa bibliografia sobre Lampião e o cangaço.


Contudo, interessante notar que as obras surgidas deixaram de fazer abordagens generalistas para se voltarem a temas específicos, num verdadeiro recorte dos aspectos mais importantes que marcaram a história do cangaço. Assim, um pesquisador faz abordagem sobre o coronelismo e o cangaço, outro sobre as estratégias de Lampião, outro sobre o cotidiano cangaceiro, e já outro exclusivamente sobre a chacina de Angico.

Por mais que enveredem por temas específicos dentro do contexto maior, ainda assim estão longe de esgotar os aspectos que merecem ser pesquisados e abordados. Verdade é que tem autor que tenta forçar um pouco a barra e, ao invés de buscar a verdade e escrever com fundamento, simplesmente inventam situações até esdrúxulas. Quer dizer, tentando trazer holofotes para si, nem se envergonham de passar por ridículos. Neste sentido, o livro publicado tentando provar que Lampião não morreu na Gruta do Angico, mas já centenário e lá pelas bandas de Minas Gerais.

Contudo, nada comparável ao infamante livro escrito pelo ex-magistrado sergipano Pedro de Morais. Intitulado “Lampião - O Mata-Sete”. Muitos acreditam que diante do conteúdo desrespeitoso, infundado e totalmente mentiroso, o autor procurou apenas polemizar, jogar na mídia sua verve bestial apena para polemizar. Ora, não se polemiza com a verdade, principalmente quando a notoriedade dos fatos não deixa margens a depreciações.

Elaborado com o único intuito de denegrir a imagem de Lampião, Maria Bonita e do cangaço, nasceu tendencioso e se tornou numa das maiores aberrações literárias do nordeste brasileiro. E não poderia ser diferente, pois sendo daqueles que desqualificam totalmente o cangaço, o próprio indigitado autor acabou traduzindo sua ira em entrevista concedida: “Eu quero com esse livro é desmitificar a figura desse bandido e assassino que tem missa celebrada até hoje em seu sufrágio. Uma figura que para muitos é um mito, mas não passou de um criminoso”.

Mas certamente não será o último a enveredar nos descaminhos da pesquisa, na contramão da verdade histórica. E isto porque um fato de relevo merece ser citado, e diz respeito às publicações que se acumulam, são colocadas na praça, porém sem a qualidade que se esperaria. Não são todos logicamente, pois grandes obras de pesquisa cangaceira estão vindo a lume, mas alguns livretos que não podem ser classificados nem de pesquisa nem de ficção.

Verdade é que alguns, se apresentando com o nome bonito e desnecessário de cangaceirólogo, ao invés de correr atrás de fontes primárias, fazer pesquisa de campo, viajar, pesquisar, entrevistar, ler e reler, contrapor situações, concluir sobre as mesmas situações, para depois produzir algo proveitoso, se contentam apenas em escrever sobre o que os outros já escreveram. Quer dizer, é um conhecimento sobre o cangaço apenas pelo que os outros escreveram, e não pelo que foi buscar no rastro, na caatinga, na entrevista fidedigna e esclarecedora.


Tais autores, bem como os seus livros, não produzem nada significativo ou proveitoso. Hábeis apenas em pesquisa bibliográfica discutem, por exemplo, acerca da configuração geográfica da Gruta do Angico tendo unicamente por base a afirmação de um autor, segundo a qual o local do refúgio não deixa de ser um descampado fácil de ser atacado, quando outro disse que as serras ladeando a gruta, bem como a margem do rio adiante, tornavam o lugar estratégico para a defesa dos cangaceiros.

Não obstante isso – e talvez porque achem bonito citar tal fato -, tem gente publicando livro sobre o cangaço sem jamais ter colocado os pés no Nordeste. Outro dia li uma entrevista de um desses que se enchia de orgulho ao citar que recebeu uma bolsa de estudos e passou uma temporada enfurnado numa biblioteca americana pesquisando sobre o cangaço brasileiro. Verdadeiramente não sei até que ponto tal escritor possa repassar ao leitor qualquer sentido sociológico ou antropológico em sua obra. Não sei mesmo.

Por tudo isso - digo e repito -, feliz do pesquisador ou mero interessado sobre o tema que algum dia teve a oportunidade de conversar com Adília, com Sila, com o coiteiro Mané Félix, com Durval de Cândido, dentre outros que viviam nas redondezas de Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo. A vida me deu essa chance. Não sou historiador, mas já olhei no olho da História.
  
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com

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