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sexta-feira, 6 de julho de 2012

AS CRÔNICAS DO CANGAÇO – 7 (UMA PELEJA EM VERSO E TAPA)


Por: Rangel Alves da Costa(*)
Rangel Alves da Costa

AS CRÔNICAS DO CANGAÇO – 7 (UMA PELEJA EM VERSO E TAPA) 

No nordeste brasileiro, o termo peleja possui diversas significações. Serve para designar, por exemplo, a luta diária do homem pela sobrevivência, o acirramento entre desafetos, mas também a disputa travada por meio de cantoria. Daí as pelejas travadas entre repentistas, desafiadores, violeiros.

A verdadeira peleja, essa do desafio e do repente, chega sempre com um mote, puxando um assunto. O tal mote é desenvolvido a partir do final do verso cantado, quando o repentista sobe no seu galope para responder ao desafiante; ou mesmo sem puxar o verso e apenas criando a estrofe rimada sobre o assunto, como resposta ou provocação. Quando a peleja é acompanhada apenas do pandeiro, chamam coco de embolada; e cantoria quando é puxada por viola cabocla.


Neste sentido, peleja significa o desafio proposto por dois violeiros para ver quem sai vencedor na disputa levada em versos improvisados, também chamados repentes. Eis que o desafio é a disputa musical em que dois cantadores se alternam com versos improvisados, e o repente é o verso feito na hora para contradizer e sobressair-se sobre o achado do outro improvisador.

Quando repentistas afamados chegam ao sertão é festa certa. Na feira ou no botequim, no alpendre da casa do fazendeiro ou debaixo do pé de pau, logo começa a se aglomerar uma plateia entusiasta e torcedora. Tem gente que aposta em quem vai rimar melhor, criar versos mais criativos ou deixar o outro sem ter galope de resposta. Na peleja, perde sempre aquele que começa a dizer coisa com coisa, perder o fio da rima ou demorar a pensar para responder.

Ora, a peleja tem de ser rápida, sem pausa para imaginar o melhor verso. Também não entusiasma a rima pobre, a que soa sem graça, a que não seja resposta provocativa, a que não venha à altura ou mais potente do que o outro verso. Daí a maestria de muitos repentistas nordestinos, cabras que já andam com versos afiados na ponta da língua e sabendo pelejar com qualquer mote.

E certa feita dois desses cabras, dos melhores repentistas de viola que havia em toda região, foram convidados por Seu Ermerindo - um sertanejo apaixonado por Padim Ciço e por cantoria matuta – para um desafio na sua venda, um misto de botequim e mercearia. Homem afamado na Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo, mandou espalhar sobre a chegada dos repentistas e em menos de meia hora o local já estava repleto.


Com o salão cheio, dividido entre duas torcidas, uma parte pronta para aclamar Chico Trova, e a outra pronta para zuadar em favor de Zezim Galope, eis que um dos repentistas perguntou ao dono do salão qual mote preferia pra começar. Queria propor Padre Cícero, mas seria inconveniente mandar pegar fogo em cima do santo nordestino. Então alguém gritou sobre o cangaço de Lampião. Os dois cabras se olharam com as violas prontas e, com a aceitação do senhor do salão, a peleja começou sem demora.
E Chico Trova, afinando um pouco mais a viola, começou:

“Nesses quadrantes do sertão
para cimentar o seu chão
um dia foi pintada aquarela
na povoação de Vila Bela
porque nasceu um cristão
menino que se tornou Lampião
lindo fruto que nos deste
maior homem do Nordeste”

Zezim Galope subiu na cela e foi desfazer o dito, versejando:

“Não nego a valentia de Virgulino
mas lhe nego esse destino
de ser bondoso e justiceiro
muito menos é verdadeiro
que só lutou contra a polícia
pois agiu com tanta malícia
matando e ferrando inocente
fazendo sofrer tanta gente”

A essa altura as palmas e os apupos já estrondavam pelo salão. Os defensores de Lampião, acompanhando o galope de Chico Trova, não viam a hora de o repentista dar o troco na medida. E lá foi ele:

“Seu pai que foi coiteiro conhece
a verdade maior que prevalece
foi o próprio Lampião que salvou sua irmã
do cabra que lhe esperou na manhã
pra lhe romper a virgindade
chegando e vendo tanta maldade
o Capitão sacou do punhal e pistola
cortou o pinto do cabra e fez vestir a calçola”

Zezim Galope, sem muito tempo pra pensar, apenas se esforçou pra derrubar o verso do outro e com alguma coisa que fizesse seus torcedores contagiados, contando a vitória certa. E subiu na ponga:

“Pois dizem que Lampião
não cortava pinto não
deixava o dono com ele
pra depois merecer dele
uma amizade tão profunda
que acabava dando...”

“Se disser o resto eu atiro nas suas fuças, seu cabra safado”. E um velho sertanejo partiu pra cima de Zezim Galope com arma na mão e disposto a acabar com a vida do homem. Aproveitando a confusão formada, com as torcidas trocando tapas entre si, os dois repentistas entraram no oco do mundo e nunca mais tiveram coragem de botar os pés ali.


Os dois correram com tanto medo que um escafedeu por um canto enquanto o outro pegou o caminho do cemitério. E na mercearia de Seu Ermerindo continuou o troca-tapas até que o dono deu um grito tão alto que todo mundo ficou como paralisado. Quando a sertanejada se acalmou Seu Ermerindo se virou e disse:

“Era bom mesmo que aquele sujeitinho do Zezim Galope tomasse uns tabefes por riba dos olhos que era pra nunca mais ele dizer besteira com o Capitão Lampião. Nem de brincadeira de cantoria ele devia ter inventado uma coisa dessas”. E um minuto depois botou a mão no bolso, tirou duas notas e disse: “Dou esse dinheiro a quem alcançar o safado do Zezim Galope pra dar uma lição de vara. Quem topa?”.

E todo mundo saiu porta afora na maior correria, no encalço do maldoso repentista. Por isso mesmo é que se diz que falar mal de Lampião no sertão é abrir a própria cova ou se enfiar pelo chão.   

(*)Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
http://blograngel-sertao.blogspot.com.br/2012/07/as-cronicas-do-cangaco-7-uma-peleja-em.html



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