Por: Rangel Alves da Costa(*)
O
JAGUNÇO DE BATINA
Nas terras do
Mundaréu e arredores, até por toda região de Labareda todo mundo conhece essa
história. Muitos não gostam de falar por medo, receio que algo ruim lhe
aconteça, ainda que o tal episódio tenha acontecido já desde quase cem anos.
Sobre o
assunto só falavam baixinho, às escondidas, olhando de canto a outro. Mentira
ou verdade, fato é que a lenda do jagunço de batina ou do padre jagunço se
firmou de tal modo na consciência do povo que, de geração a geração, foi sendo
repassado o baú sempre acrescido dos estranhos acontecimentos.
Não sou besta
de dizer quem me contou, pois o homem me pediu por tudo na vida que não
revelasse sua identidade nem em qual circunstância relatou o que sabia. Mas
sobre isso, coisa que não mereça ficar no túmulo do esquecimento, digo logo que
foi num botequim afastado, num canto de balcão, tendo à frente uma garrafa da
mais autêntica aguardente. Pinga da boa, casca de pau. Angico. Ou umburana?
Tanto faz. Não
lembro bem. Também tomei umas duas. Mas vamos lá. Contou-me o homem que ouviu
dizer de quem já tinha ouvido dizer de boca passada a boca, que nos tempos mais
antigos, ali mesmo naquele lugar e região vivia um poderoso coronel sertanejo,
sujeito analfabeto de pai e mãe, mas com poderio desmedido sobre tudo que havia
ao redor, incluindo os andantes e os rastejantes. De sua moradia senhorial
ditava a vida e a morte de toda criatura existente ao redor.
À mesma época,
os serviços religiosos eram comandados por um vigário muito querido pelo povo,
pois homem que não se contentava apenas com a igreja e fiéis e de vez em quando
se embrenhava nas matas para viver, como aclamava em sermão, o verdadeiro
sentimento do povo matuto, a realidade do humilde sertanejo trabalhador.
Conhecendo aquela gente de perto, seria mais fácil de pedir a Deus que
intercedesse diante de cada situação.
Contudo, logo
se descobriu que aquelas andanças do vigário nada tinham a ver com visita ao
povo mais afastado para conhecer suas dificuldades, vivenciar a sua labuta de
sol a sol e os seus sofrimentos de lua a lua. Não. Nada disso. E muito pelo
contrário. O vigário se dirigia mesmo, às escondidas, cortando vereda e
amolando espinho, para o casarão do coronel, onde sempre entrava pela porta dos
fundos.
Era uma
relação muito estranha aquela entre o coronel e o vigário. Uns diziam que o
religioso ia até lá com a incumbência de tentar afastar parte dos incontáveis
pecados do mandachuva. Afirmavam até que as visitas envolviam procedimentos de
exorcização e de muita coisa esquisita. Outros diziam que estavam mancomunados
na prática do mal e que o sacerdote não passava de verdadeiro mentor das tantas
crueldades praticadas pelo poderoso algoz.
Mas um dia,
meio sem querer, a verdade foi sendo descoberta. Eis que um desempregado pistoleiro
do coronel, cabra pau pra toda obra, depois de tomar uma cachaça sem freio
acabou falando demais e disse que ia matar não só o coronel mas também aquele
que havia tomado seu lugar de jagunço, de matador, de tocaiador e derrubador de
qualquer um. Então, um ouvido ouviu, mandou descer outra garrafa de pinga e o
revoltado acabou dizendo quem era o novo jagunço do coronel: o vigário.
Logicamente
que o espanto foi geral. E uma dose mais e outra a mais, e o ex-pistoleiro
acabou revelando tudo de vez. Então disse que o sacerdote não só era bom de
pontaria, experiente na emboscada, exímio na espera do inimigo, como fazia tudo
vestido de batina. Usava a batina quando ia fazer emboscada porque se fosse surpreendido
em atitude suspeita logo arrumava uma desculpa pra todo mundo acreditar.
Por isso mesmo
tentava confundir os humildes fiéis e alardeava que andava pelo meio do mato
visitando os pobres, conhecendo a fundo a realidade empobrecida daquelas distâncias.
Mas não. Quando não estava na cozinha do coronel planejando a próxima morte,
discutindo valores perante a fama e o poder do marcado para morrer, era porque
já estava embrenhado na mataria à espreita da vítima.
Levando
debaixo da batina uma carabina de cano curto, depois que apertava o gatilho
certeiro esperava um pouquinho e seguia até o local do estrebuchamento da
vítima. E ali mesmo dava a extrema-unção. Tirava o chapéu, um rosário do bolso,
e de aspecto contrito, como se estivesse sofrendo diante da situação, balançava
o rosário por cima do caído e encomendava a alma às profundezas. Se a pessoa
ainda estivesse se mexendo, dava o tiro de misericórdia e depois entrava
novamente no mato.
Mas por que um
homem da igreja se prestava a um serviço desses, quebrando todos os seus
preceitos e se transformando num jagunço frio e desumano do coronel? Isto foi
perguntado ao pistoleiro desempregado, mas ele disse que preferia não
responder. Estaria cometendo um pecado grande demais, infinitamente maior do
que todos que já havia cometido. Mas depois que viu duas notas dobradas por
cima do balcão acabou revelando mais.
E disse que a
intenção do coronel não era só, pagando caro, submeter o vigário e
transformá-lo em jagunço, em perigoso matador, como acabou acontecendo. A
intenção do homem era de uma astúcia sem precedentes. Transformando o religioso
num bandido, mais tarde o entregaria à justiça. E foi assim que também fez.
Armou emboscada em cima de emboscada, e enquanto o vigário soprava o cano
disparado foi cercado pela polícia.
O coronel
mandava em tudo, e mandou também a polícia praticar o flagrante. E depois pegou
a batina do desafortunado pecador e se fez padre na igreja. E dizem que durante
mais de dez anos, até sua morte, celebrou missa, casamento e batizado. E
mandava dizer aos fiéis que se não comparecessem ao templo corriam grande
perigo. E mais de dez morreram por afirmarem que não se submeteriam a uma
heresia daquelas.
Depois de cada
serviço religioso montava no seu alazão e seguia tranquilamente até seu casarão.
E se danava a pecar, a violentar, a fazer ecoar o grito de sofrimento em todos
aqueles que rezavam na cartilha de sua chibata. Só pausava as brutalidades e as
arrogâncias quando recebia o amigo bispo para um carteado regado a uísque.
E dizem que
foi assim. Acredito...
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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