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quinta-feira, 26 de setembro de 2013

De Virgulino a Lampião - Samamultimídia - Parte IV


Lampião

Zé Saturnino

Admitia, enfim, José Ferreira, que tinha um inimigo irreversível, o qual, abertamente declarava, queria fosse ele com toda a família para muito longe. Mas, para onde? Com que recursos? Os negócios se esmigalhando naqueles tempos ruins, prejuízos crescendo, aperturas de vida, e pior de tudo, a doença da querida esposa. Desde os choques emotivos provenientes de atentados e emboscadas contra a vida de seus filhos, tendo saído ferido o primogênito Antônio, começaram a aparecer nela umas agonias estranhas, os primeiros sintomas de graves distúrbios cardíacos.
 
1919: ano repleto de acontecimentos trágicos. O Pajeú pegando fogo!

Renhidos combates entre os Pereiras e os Carvalhos, experiências dos irmãos Ferreiras no cangaço, perseguições à família Ferreira, grande seca, miséria e fome. Ano marcante na história do Vale.

Em dias de janeiro, Virgulino, simulando acompanhar seus irmãos numa viagem de almocrevia, rumou no destino da vila de São Francisco para uma visita a Sinhô Pereira, famoso cangaceiro e chefe de numeroso grupo. Dentro de seus novos planos estava o de obter o apoio de Sinhô Pereira e de conhecer, na observação e convivência, a vida do cangaço.
 
Logo de chegada, aqueles dois jovens, de evidentes afinidades, mesma compleição e quase da mesma idade, se compreenderam e afeiçoaram. Ambos naturais daquelas ribeiras carrasquentas, secas e sempre conflagradas. Sebastião Pereira, nascido de uma família em contendas políticas cruentas e delas participando, era um belígero. Virgulino, nascido e vivido no trabalho, conhecia apenas de longe, através de narrações e literatura de cordel, a vida e façanhas do cangaço. Ambos com o futuro e os ideais de vida retalhados em plena juventude por questões de intrigas com os mesmos inimigos rastejando à sombra sinistra de João Nogueira. Estavam ligados, pois, seus corações na amizade e nos destinos.

Diariamente, danças e serenatas em homenagem festiva ao prazeroso visitante. De golpe e de vez, conquistou a admiração geral dos mais todos, principalmente em dois fatos revelantes de sua inteligência e habilidade, pontaria e agilidade:

 
1: O pulo.
 
Apostava, no ato de pular uma janela, e através de um único pulo rápido, quem seria capaz de dar cinco tiros de rifle acertando numa estaca a sete braças na frente colocada. Uma cumandita de cabras (mais de sessenta) experimentou. Apenas um conseguiu três tiros, assim mesmo à toa, fora da mira, esbandaiados. Os demais, um ou dois tiros a esmo.

Virgulino era um gato na ligeireza. Fazia carreira, encolhia-se no salto pela janela, o rifle apontando em riste e disparava cinco tiros no alvo certo, caindo de cócoras do outro lado, pernas abertas e firmes, com outra imediata descarga fincada no mesmo ponto marcado! 

-“Visse? – dirigia-se a todos Sinhô Pereira examinando a estaca perfurada – não errou um tiro!”

O pulo

2: O nome “Lampião”.

Botou-se Virgulino, pela primeira vez, para consertar armas de fogo defeituosas, desterioradas. Desmontava e remontava os fechos, raspava e areava as porções enferrujadas, fazia retumbamento, substituía as partes desgastadas por outras que, naquelas precárias condições, conseguia ele próprio fabricar, untando tudo com azeite de carrapato a modo de ficarem doces no manejo. Um perfeito armeiro.

Nessas operações aprendeu o mecanismo acionador das armas de repetição. Não conhecia as automáticas, inexistentes naquela época no Nordeste. Foi aí então que se evidenciou a inteligência criadora e engenhosa de Virgulino ao descobrir por um meio tão simples – um lenço! – o jeito de tornar o rifle uma arma de maior rendimento. É, a famosa peia, invento seu.
 
Com o lenço prendia Virgulino a tecla do gatilho à alavanca de manejo, unindo-os de modo que, em cada movimento da alavanca, o pino do percutor (agulha), liberto, picotava a cápsula fulminante, por si mesmo, sem necessidade de se acionar a tecla. Transformou, deste modo, o rifle (cruzeta ou papo amarelo) de repetição em arma semi-automática, isso porque não dispensava o manejo da alavanca para colocar o cartucho na câmara.
 
Virgulino manejava com tanta rapidez a alavanca do rifle assim peiado que os tiros se sucediam formando uma tocha na boca do cano. Ora, contam-se os tiros pelos clarões sucessivos na boca do cano. Impossível contar os de Virgulino. Era um clarão só, aturado, permanente!
 
Sem nenhuma falsa modéstia, Lampião com toda a convicção disse: “Meu rifle não nega fogo!”.
 
Sinhô Pereira replicou: “Que é isso, Virgulino, rifle que não nega fogo não é rifle, é lampião”.
 
Algazarra da cabroeira toda em torno de Virgulino, que, cheio de entusiasmo mas  sem nada dizer, deu início à nova demonstração. Um dos cabras, Fiapo, embasbacado, deixara cair do beiço o cigarro que fumava, e gritou:

-    “Acende de novo o lampião para eu achar meu cigarro”.
 
E o nome pegou. Do rifle para Virgulino. Ao deixar a vila levava a alcunha.
 
-    “Meu nome é Virgulino. Apelido: Lampião”.

Vivia José Ferreira aperreado com a danação da seca, das questões e da doença em casa. Via o seu mundo, que criara com tanto sacrifício, honestidade e amor, ir desabando inexoravelmente.  Sua esposa dia a dia se mostrando mais cansada, chegando a ela umas gasturas e ardumes estranhos com agonias de dar cuidado. A almocrevia, esteio de sua economia familiar, afracada. As praças de negócios mais avantajadas, Vila Bela e Triunfo, estavam com os caminhos impraticáveis pela sanha perseguidora e avara de inimigos implacáveis e pelo compromisso assumido pelos irmãos Ferreiras de não se achegarem nas terras dos mesmos. No entanto, nas viagens de almocrevia por outros caminhos, os três irmãos – Antônio, Livino e Virgulino - eram sempre atacados em emboscadas, com trocas de tiros... 
 
O clima para os Ferreiras em Nazaré ficava cada vez mais difícil. A propósito de tudo isso e coberto de desgostos, dizia José Ferreira: “Meus filhos, vejam que aqui não posso viver”. E depois aconselhou a não tomarem vingança: “Isso não dá certo. O importante é a vida!”  A partir de então, começou a desfazer-se de seus resistentes burros de carquejar. E foi vendendo também o gado, as criações, as miunças antes que se desacabassem à mingua.
 
No mês de novembro do mesmo ano, houve novo convite de Sinhô Pereira e novas experiências no cangaço para Virgulino, desta vez acompanhado de seus dois irmãos.  Participou ele, durante um mês, de cinco combates contra as volantes do Capitão José Caetano de Melo. Nessas ocasiões se mostrou exímio, como sempre e em tudo. Sobretudo exímio combatente! Parecia um veterano no cangaço. Lutava com denodo e sustança. Os inimigos temiam, sem saber de quem partiam aqueles precisos tiros, sua excelente pontaria. Era o último a correr nos combates. Se fora ali receber lições, também estava dando as suas. Marcando ascendência, cativando simpatias, liderando... E os cabras já o tratavam pela alcunha de “Sinhô Lampião”.
 
No momento do retorno, Sinhô Pereira, ante o valor de Virgulino, insistiu para que continuasse no grupo, juntamente com seus irmãos. Por si e por seus manos lhe respostou Virgulino: “Ainda tenho pai. Não quero matar meu pai de desgosto”.
 
Na despedida calorosa de toda aquela cabroeira diante do pesar da partida dos valorosos companheiros e tão bons filhos, Sinhô Pereira, apontando com o indicador da mão direita para o alto, inda augurou a Virgulino: “Tenho fé em Deus você voltar com seus irmãos e com seu apelido!”  E com o afastamento de todas as famílias Ferreiras, cada vez mais anchos e cônscios de seu poderio ficaram os inimigos.
 
Ainda em 1919, novas invasões aconteceram, rompendo definitivamente o compromisso assumido por parte dos inimigos, e cada vez mais com o apoio tácito de muitos nazarenos, com o quê se indignava Virgulino. E assim, a cada dia mais hostilidades e maior o número de inimigos provocadores em Nazaré, para maior tensão e desgosto para toda a família Ferreira. No primeiro fogo contra os nazarenos, Livino sai ferido com um tiro no braço saindo a bala pelo ombro. Levaram-no preso para Nazaré, donde, foi levado para Floresta e ali tratado, durante quinze dias, com cuidado e competência, pelo padre José Kehrle, vigário da freguesia.

Antônio Boiadeiro, homem de preceito e muito cordato, reprovou o erro do incompetente Delegado Américo em prender o moço. Não havendo culpa formada contra o prisioneiro e querendo apaziguar os espíritos, propôs um acordo com Livino e seus parentes ali, sem demora, chegados para solução do caso. O acordo: evitar-se-ia processo criminal com a condição de Livino e seus dois irmãos irem embora, deixando Floresta em paz. Tudo aceito, embora fosse tributo pesado para o pacífico José Ferreira.

José Ferreira era homem de palavra, dada e cumprida, qualidade essa de caráter de quem Virgulino muito puxou. Nos conformes do acordo firmado em Floresta tratou logo de retirar seus três filhos do município. Somente que iria também com eles, retirando toda a sua família, mesmo com grandes prejuízos, mais uma vez.
 
Nos primeiros dias de janeiro de 1920, viajaram logo na frente, Virgulino e Antônio. Durante a viagem, Virgulino admitiu que, do modo como iam as coisas, com perseguições e injustiças, não havia outra saída senão o cangaço.

Chegando em Tacaratu, Virgulino ficou trabalhando como alugado na propriedade Baltazar, nos misteres da agricultura. Que diferença Virgulino sentiu, dos tempos de antes atrás quando era dono de sua terra e do que era seu, negociando por conta própria nas feiras e a prosperidade lhe sorrindo!... Agora, ali, naquela derrota! A inquietude inquizilava e ardia no espírito de Virgulino. Embirrava no pensamento de tudo o que acontecera em quatro anos de perseguição continuada e dentro de toda versidade de modo. Não podia ficar por isso mesmo, não. Não lhe dizia sempre sua mãe “Não tenho filho para guardar no baú” ?

Certo dia, disse ele: “Seu Juca, estou bem aqui, mas preciso tomar umas desforras. Me dê as contas”.

Enquanto isso, em Floresta, com a partida dos dois irmãos, as autoridades do município deram liberdade a Livino que, ainda convalescente chegou ao Poço do Negro. O pai logo tratou de arrumar os picuás para a sua segunda mudança ou fuga, forçado pela desdita. Otimista, mesmo naquelas vicissitudes, sonhava José Ferreira com essa coisa que, sem ele perceber, lhe fugira de vez: a paz!

CONTINUA...
 

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