Fragmento do capítulo de livro - transcrito por Luiz Alberto da obra: Lampião /Ranulfo Prata/Traço
Editora
Ante um tema
tão curioso, impossível esconder a curiosidade que é despertada pelos tipos
humanos que faziam o cangaço existir. Aqueles que conhecem o povo nordestino,
mais de perto o sertanejo, ficam a imaginar como um povo tão trabalhador, tão
tímido e consciente do dever do cumprimento das leis, humana e divina, foi
responsável por páginas e páginas de uma história de saques, estupros,
homicídios.
OS CABRAS DE LAMPIÃO
(Ranulfo
Prata)
Quem conviveu
com muitos deles, entrevistou parentes, conheceu-os pessoalmente, por certo que
está habilitado a descrevê-los. É o caso de Ranulfo Prata:
Quando o cabra
se candidata à caterva, "Lampião" encara-o fixamente, como a
prescrutar-lhe no olhar, no gesto, no todo, a sua lealdade e bravura.
Não raro pede
credenciais, indaga do que já fez se tem proezas apresentáveis, se anda
"corrido da justiça". Quando percebe que no coração do novo
companheiro lavra o ódio aos macacos, alegra-se e o acolhe com mais simpatia. E
avisa gracejador.
De duas coisas
eu lhe garanto no meu bando, camarada, é você não morrê de quéda de rêde, nem
de indigestão.
Compreende-se:
de rede não cairá porque cangaceiro não experimenta jamais o seu conforto,
dorme sempre no chão da mata dos terreiros e das veredas; indigestão não
sofrerá porque o seu regime passará a ser o mais sóbrio possível, pouquíssimo
alimento deglutido sempre às pressas.
Volta-Seca
Foi
lugar-tenente de mais dilatada fama que já teve "Lampião".
Acompanhou-o
durante 4 anos, deixando-o um dia, quizilado, para ser preso logo em seguida, por
civis.
Vejamos os
seus perfis traçados, com mão segura de mestre, pelo Dr. Artur Ramos, legista
do Instituto Nina Rodrigues, da Bahia, que o estudou cuidadosamente na prisão.
Perfil
Antropológico
A primeira
impressão que se tem ao defrontar o bandido Volta-Seca, é de um grande
"desapontamento", é encontrada neste jagunço do Norbrosianas – cabeça
disforme, face prognata, malares salientes, sobrecenho carregado, olhar
"duro" e mau, orelhas malformadas, que sei mais? – nenhum destes caracteres
que fizeram a celebridade do "criminoso nato", são encontradas neste
jagunço do Nordeste. Não se diferencia em nada do inculto caboclo do mato.
Antes cafuzo do que caboclo propriamente dito Volta-Seca é o tipo do
adolescente mal saído da época puberal.
Dezesseis
anos. De estatura um pouco abaixo do normal: 1,58 e 5. Franzino, parece contudo
tender para o tipo constitucional leptosomático.
Como a maioria
de seu grupo étnico é braquicéfalo: índice cefálico: 88,60. Índice facial:
63,00. Nenhuma anomalia, nenhum estigma antropológico de degenerescência.
Sistema muscular pouco desenvolvido. Tem a cor brônzea escuro do caboclo
sertanejo. Não é tatuado. O seu corpo está crivado de cicatrizes de sucessivos
ferimentos por arma de fogo e arma e arma branca.
Cabelos
encaracolados, castanhos. Raros pelos de implantação normal. Boa conformação
corpórea. Não lhe pratiquei neste primeiro sumaríssimo exame, outras medidas
antropométricas. Não parece haver disendocrinia apreciável. Em suma:
constituição leptosomática, branquicéfalo, leptopresepe, mesorino.
Perfil
Psicológico
Outro
desapontamento. É o menino aparentemente ingênuo dos sertões. Crivado de
perguntas, responde com humildade, fala arrastada, com precisão. Não parece
haver lacunas apreciáveis do seu fundo mental, o que só se poderá saber com
rigor em provas subsequentes.
Esta impressão
de ingenuidade vai desaparecendo progressivamente, à medida que vamos
mergulhando nos abismos desconhecidos da sua psique criminal. Deixemo-lo narrar
a série negregada de suas tropelias malditas nos sertões nordestinos. Temos
então o tipo integrado ao seu habitual. Isoladamente, é o caboclo humilde, o
adolescente inofensivo que temos diante de nós. Socialmente, porém, é o membro
temível de uma coletividade anormal.
Em Volta-Seca,
o fator intrínseco da criminalidade cede de muito o passo aos fatores
extrínsecos, mesológicos, que o caracterizam como um dos elementos mais
perversos, mais criminosos, mais ferozes, do grupo de "Lampião".
O diagrama da
sua vida é um subsídio importantíssimo para a sociologia criminal. A sua
iniciação no crime, quero dizer, a motivação aparente do seu ingresso no
banditismo, não conhece aquelas causas apontadas como as mais comuns entre
outros membros da horda: sentimentos de vindita de família, e causas mais
complexas, econômicas, mesocósmicas, etc. Volta-Seca não chegou a conhecer
estas motivações. Ingressou no crime "não sabe por que". Trabalhava
no povoado de Guloso, onde vivia, quando "Lampião" surgiu em seu
caminho e o carregou consigo, para os serviços menores da tropa.
Antonio dos
Santos (é esse o seu nome) não opôs resistência. Foi. Para ele, era um achado.
Deixaria de vender queimados, e de viver sob o guante paterno. E passou a agir
como os outros. Simples fenô menos de imitação, sugestão e contágio mental.
Começou a sua
"aprendizagem" do mal. Aquela criança que ainda não sabia o que era a
vida tornava-se agora o mais criminoso dentre os criminosos, o mais perverso, o
mais temível.
Havia de
conquistar as graças do compadre "Lampião". E conquistou. Sabe Deus
como. Diga-o a sua crônica apavorante.
Este relato,
ele próprio o faz, com indiferença, às vezes ligeiramente irônico e vaidoso.
Erostratismo criminal.
Volta-Seca é
um débil moral. A um exame, mesmo perfunctório como este, nota-se, claramente,
um pronunciado grau de analgesia moral.
Parece
indiferente com a sorte que o aguarda. Um espécime como este merece ser
estudado profundamente. Quais as determinantes intrínsecas do seu comportamento
criminal? É uma questão que só a análise dos degraus mais remotos do seu psiquismo
pode resolver. Que "complexos" inconscientes se ocultam nos
bastidores da sua alma? Até que ponto influiu para a formação do temperamento
criminal a sua história familiar, "aquele romance neurótico de
família", de que falava Otto Bank? Será a sua vida criminal uma
"evasão" de uma antiga situação hostil? Ou procurará antes nela uma
autopunição para algum crime inconsciente num "mecanismo de
repetição" este "self-repeating-process" dos fenômenos do
banditismo?
Estas
perquirições, pela psicanálise, merecem ser feitas nesse bizarro filho do
crime, cuja concepção da vida se formou na visada do seu fuzil, instrumento de
agressão, símbolo da sua hostilidade ao ambiente, expressão de uma
inadaptabilidade social, porventura anterior à sua "história" criminal
no grupo de "Lampião".
Do resultado
destas pesquisas depende um mais perfeito conhecimento das determinantes da
criminalidade do nordeste brasileiro, fenômeno bio-psíco-sociológico aqui, como
alhures, para todas as formas criminais, na larga e feliz expressão de Ferri.
http://lampiaoaceso.blogspot.com.br/2009/10/os-cabras-de-lampiao-ranulfo-prata.html
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário