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sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Bangu, Memória de um Militante - Lauro Reginaldo da Rocha - Bangu - Parte XIII

Por Brasília Carlos Ferreira – Organizadora, 1992
 

“A SALA DOS DETIDOS”

A sala dos detidos da Polícia Central não era bem uma sala. Era uma série de cubículos separados por um corredor. Esses cubículos estavam superlotados de presos políticos, todos em regime de incomunicabilidade. A insegurança e o terror eram a constante entre esses presos, pois a qualquer momento alguém podia ser retirado para interrogatórios, dos quais quase sempre voltava todo rebentado, quando voltava.

Certa vez vi caminhar vagarosamente pelo corredor, seguro por dois investigadores, um corpo descarnado de um rapaz franzino, ainda jovem, quase não se aguentando em pé. Era Pascacio, um operário pernambucano companheiro inteligente, firme, um caráter a toda prova. Diziam que ele estava sendo submetido às torturas e o seu estado de nervos ultrapassou os limites do suportável. Foi ao banheiro, apanhou uma lata de soda cáustica inexplicavelmente esquecida lá e bebeu o seu conteúdo. Não morreu na hora. Mas o estômago devolvia todo alimento que ingeria, e seu corpo foi afinando, as carnes se consumindo, até sucumbir, depois de longo sofrimento.

Quanto ao meu estado físico, a recuperação começou. A alimentação fornecida aos presos era horrível: mas os companheiros faziam chegar ao meu cubículo um reforço de frutas e outros alimentos mais leves, de acordo com meu estado de fraqueza. Aos poucos fui recuperando as forças até chegar ao meu estado normal.

Para tratar dos doentes – os cubículos da sala de detidos formavam um amplo hospital – a polícia dispunha de “enfermeiros” ou melhor dito, de “tiras” arvorados nessa função. As equimoses, feridas, tumores e unhas semi-arrancadas eram tratadas por esses enfermeiros para evitar, o mais possível, que deixassem marcas e aleijões denunciadores.

O companheiro Jorge da Silveira Martins, advogado, neto do Ministro de Estado nos anos finais do Império, teve um desequilíbrio nervoso e passava dias e noites gritando. O Silveira, que lá fora vivia a defender gratuitamente a todos os que necessitavam dos seus serviços profissionais, era agora também vítima das torturas que ele tanto combatera e denunciara.

A ditadura do “Estado Novo” podia se vangloriar de que estava bem aparelhada para a repressão. Tinha salas de torturas, tinha torturadores treinados por técnicos nazistas e tinha médicos e enfermeiros para servi-los e acompanhá-los. Fabricavam aleijados, neuróticos e loucos, mas não faltavam enfermeiras, hospitais e manicômios. Tudo isto ali mesmo, dentro do próprio velho casarão da rua da Relação. Matava e fabricava suicidas, mas os cemitérios estavam lá fora para enterrá-los.

Transpor os portões dos calabouços fascistas era transpor as portas de um inferno.

A minha família criou um problema para a polícia. A mulher sem recursos de espécie alguma, em vésperas de ter filho, com três crianças sem terem para onde ir nem com quem deixar, pois não tínhamos nessa época parentes no Rio, era um embaraço. O parto era considerado perigoso, em vista das crises nervosas da parturiente, em tais circunstâncias poderia chegar ao conhecimento da opinião pública e repercutir desfavoravelmente contra o governo.

No Rio Grande do Norte os nossos parentes tomaram conhecimento rápido de nossa prisão e passaram a se movimentar no sentido de interrogar a polícia, através, dos políticos, sobre o que estava ocorrendo e sobre o paradeiro da mulher e das crianças. E a polícia encontrou a solução: mandou todos – mulher e filhos – para o Rio Grande do Norte, entregando-se ao meu sogro, que os recebeu de braços, apesar do seu minguado ordenado de Secretário da Escola Normal.

Logo depois veio a notícia, numa carta: “parto difícil, a criança nasceu morta. Aliás, morta já estava, há dias, no ventre materno, segundo a informação. Mas, a mãe estava salva! O prestígio da ditadura não fora arranhado, se é que realmente poderia ser, por tão pouco. Os policiais podiam dormir tranquilos, não haveria recriminações.

Na “sala dos detidos” continuava a situação de terror. Num cubículo isolado, estava um baleado. Era o companheiro Martins (Honório de Freitas Guimarães).

Uma operária de são Paulo estava noutro cubículo de mulheres, com as unhas arrancadas, em estado lastimável. Magra, franzina, tinha passado pelas torturas mais cruéis, mantendo-se numa atitude digna e corajosa.

Elias Reinaldo, outro operário pernambucano, andava se arrastando apoiando em muletas improvisadas. Fora atacado de polionevrite, em consequência das pancadas que lhe deram nas pernas.

Matias outro mártir, ficou com a região pubiana em chagas, que viraram cicatrizes, proveniente das queimaduras com tochas de jornais, “trabalho” da trinca Cegadas-Monteiro-Pequenino. A esposa desse companheiro, com os nervos abalados, acabou pondo termo a própria vida em São Paulo. Nunca é demais repetir que a ditadura dessa época – como todas as suas congêneres – mantinha rigorosa censura aos meios de difusão, não permitia que esses crimes fossem divulgados, a não ser através de sua própria versão, manipulada, deformada.

Os dias, as semanas e os meses iam passando e não havia nenhum indício de quando a nossa situação ia se modificar. O desejo de todos era sair do “inferno” (polícia Central) e ir ao purgatório (casa de correção). Essa classificação vulgar era feita zombeteiramente pelos “tiras” e simbolicamente correspondia a realidade. Isto porque poucos tinham esperanças de ser libertados. Os que não esperavam ter essa sorte, desejavam pela menos tirar sua cadeia, grande ou pequena, em sossego.

Todavia, lá fora as coisas não andavam muito tranquilas. A segunda guerra mundial começou. O nazismo iniciou a invasão dos países da Europa, no seu sonho de dominar o mundo. A cartada fora lançada. Qual seria a posição do Brasil nessa luta decisiva? Era essa a pergunta que todos faziam.

CONTINUA...

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