Por
Brasília Carlos Ferreira – Organizadora, 1992
“A SALA DOS
DETIDOS”
A sala dos
detidos da Polícia Central não era bem uma sala. Era uma série de cubículos
separados por um corredor. Esses cubículos estavam superlotados de presos
políticos, todos em regime de incomunicabilidade. A insegurança e o terror eram
a constante entre esses presos, pois a qualquer momento alguém podia ser
retirado para interrogatórios, dos quais quase sempre voltava todo rebentado,
quando voltava.
Certa vez vi
caminhar vagarosamente pelo corredor, seguro por dois investigadores, um corpo
descarnado de um rapaz franzino, ainda jovem, quase não se aguentando em pé.
Era Pascacio, um operário pernambucano companheiro inteligente, firme, um
caráter a toda prova. Diziam que ele estava sendo submetido às torturas e o seu
estado de nervos ultrapassou os limites do suportável. Foi ao banheiro, apanhou
uma lata de soda cáustica inexplicavelmente esquecida lá e bebeu o seu
conteúdo. Não morreu na hora. Mas o estômago devolvia todo alimento que
ingeria, e seu corpo foi afinando, as carnes se consumindo, até sucumbir,
depois de longo sofrimento.
Quanto ao meu
estado físico, a recuperação começou. A alimentação fornecida aos presos era
horrível: mas os companheiros faziam chegar ao meu cubículo um reforço de
frutas e outros alimentos mais leves, de acordo com meu estado de fraqueza. Aos
poucos fui recuperando as forças até chegar ao meu estado normal.
Para tratar
dos doentes – os cubículos da sala de detidos formavam um amplo hospital – a
polícia dispunha de “enfermeiros” ou melhor dito, de “tiras” arvorados nessa
função. As equimoses, feridas, tumores e unhas semi-arrancadas eram tratadas
por esses enfermeiros para evitar, o mais possível, que deixassem marcas e
aleijões denunciadores.
O companheiro
Jorge da Silveira Martins, advogado, neto do Ministro de Estado nos anos finais
do Império, teve um desequilíbrio nervoso e passava dias e noites gritando. O
Silveira, que lá fora vivia a defender gratuitamente a todos os que
necessitavam dos seus serviços profissionais, era agora também vítima das
torturas que ele tanto combatera e denunciara.
A ditadura do
“Estado Novo” podia se vangloriar de que estava bem aparelhada para a
repressão. Tinha salas de torturas, tinha torturadores treinados por técnicos
nazistas e tinha médicos e enfermeiros para servi-los e acompanhá-los. Fabricavam
aleijados, neuróticos e loucos, mas não faltavam enfermeiras, hospitais e
manicômios. Tudo isto ali mesmo, dentro do próprio velho casarão da rua da
Relação. Matava e fabricava suicidas, mas os cemitérios estavam lá fora para
enterrá-los.
Transpor os
portões dos calabouços fascistas era transpor as portas de um inferno.
A minha
família criou um problema para a polícia. A mulher sem recursos de espécie
alguma, em vésperas de ter filho, com três crianças sem terem para onde ir nem
com quem deixar, pois não tínhamos nessa época parentes no Rio, era um
embaraço. O parto era considerado perigoso, em vista das crises nervosas da
parturiente, em tais circunstâncias poderia chegar ao conhecimento da opinião
pública e repercutir desfavoravelmente contra o governo.
No Rio Grande
do Norte os nossos parentes tomaram conhecimento rápido de nossa prisão e
passaram a se movimentar no sentido de interrogar a polícia, através, dos
políticos, sobre o que estava ocorrendo e sobre o paradeiro da mulher e das
crianças. E a polícia encontrou a solução: mandou todos – mulher e filhos –
para o Rio Grande do Norte, entregando-se ao meu sogro, que os recebeu de
braços, apesar do seu minguado ordenado de Secretário da Escola Normal.
Logo depois
veio a notícia, numa carta: “parto difícil, a criança nasceu morta. Aliás,
morta já estava, há dias, no ventre materno, segundo a informação. Mas, a mãe
estava salva! O prestígio da ditadura não fora arranhado, se é que realmente
poderia ser, por tão pouco. Os policiais podiam dormir tranquilos, não haveria
recriminações.
Na “sala dos
detidos” continuava a situação de terror. Num cubículo isolado, estava um
baleado. Era o companheiro Martins (Honório de Freitas Guimarães).
Uma operária
de são Paulo estava noutro cubículo de mulheres, com as unhas arrancadas, em
estado lastimável. Magra, franzina, tinha passado pelas torturas mais cruéis,
mantendo-se numa atitude digna e corajosa.
Elias
Reinaldo, outro operário pernambucano, andava se arrastando apoiando em muletas
improvisadas. Fora atacado de polionevrite, em consequência das pancadas que
lhe deram nas pernas.
Matias outro
mártir, ficou com a região pubiana em chagas, que viraram cicatrizes,
proveniente das queimaduras com tochas de jornais, “trabalho” da trinca
Cegadas-Monteiro-Pequenino. A esposa desse companheiro, com os nervos abalados,
acabou pondo termo a própria vida em São Paulo. Nunca é demais repetir que a
ditadura dessa época – como todas as suas congêneres – mantinha rigorosa
censura aos meios de difusão, não permitia que esses crimes fossem divulgados,
a não ser através de sua própria versão, manipulada, deformada.
Os dias, as
semanas e os meses iam passando e não havia nenhum indício de quando a nossa
situação ia se modificar. O desejo de todos era sair do “inferno” (polícia Central)
e ir ao purgatório (casa de correção). Essa classificação vulgar era feita
zombeteiramente pelos “tiras” e simbolicamente correspondia a realidade. Isto
porque poucos tinham esperanças de ser libertados. Os que não esperavam ter
essa sorte, desejavam pela menos tirar sua cadeia, grande ou pequena, em
sossego.
Todavia, lá
fora as coisas não andavam muito tranquilas. A segunda guerra mundial começou.
O nazismo iniciou a invasão dos países da Europa, no seu sonho de dominar o
mundo. A cartada fora lançada. Qual seria a posição do Brasil nessa luta
decisiva? Era essa a pergunta que todos faziam.
CONTINUA...
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