Seguidores

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

“O GLOBO”- 24/11/1958 - PARTE XVII

Material do acervo do pesquisador Antonio Corrêa Sobrinho

COMO SE FORJA UM CANGACEIRO

FUGI DE VIRGULINO PARA AS GARRAS DA POLÍCIA

Duas Rixas Com Lampião – Eu Estava Com as Horas Contadas – Pus-me em Fuga no Meio da Noite a Instâncias Dos Próprios “Cabras” – Refega com a Força: um Contra Vinte.

NÃO me recordo até hoje de ter contado a ninguém como fui capturado pela força volante. Muita gente estranha o fato de não me terem dado cabo da vida naquela ocasião, visto que não era comum a Polícia fazer prisioneiros em se tratando de cangaceiros. E eu mesmo até hoje fico intrigado pela forma como fui preso, pois tudo levava a crer que eu fosse degolado, não só as condições em que me pegaram, como a fama que eu tinha. Polícia algum me olhava com bons olhos, e minha pouca idade não adiantava para inibi-los de se tornarem agressivos contra mim. Aliás, nunca ninguém deu importância à minha idade, nem durante as refregas do bando, nem tampouco quando me prenderam e me mandaram para a cadeia. Eu sempre fui para todos um perigoso cangaceiro, apesar de não ter mais de 1,60 m de altura e nem um fio de barba na cara.

Fui preso porque me indispus com Lampião e abandonei o bando. Tudo começou em Raso da Catarina, um dos lugares mais horrorosos do interior da Bahia e talvez mesmo do mundo. Lá não havia uma casa sequer; só mato, e ainda por cima cheio de bichos, inclusive onças e cobras. Cobras, então, devia ser a principal riqueza daquele solo, sendo que poucas vezes vi tantos ofídios reunidos. Raso da Catarina devia ser uma sucursal do inferno, pois, além do mais, tudo estava seco; água, havia pouca, e assim mesmo de croatá. Sendo um local tão miserável, é claro que seria bom para o bando, pois à volante não apeteciam aquelas paragens.

Foi nessa torturante travessia do Raso da Catarina que o bando resolveu descansar. Depois de algumas horas acampado, Lampião decidiu prosseguir e chamou um rapazinho, mais moço do que eu ainda, quase um menino, chamado Pocorante, e ordenou-lhe que fosse buscar o burro em que Lampião vinha montado. Pocorante, que, diga-se desde já, era um garoto abobalhado, saiu à cata do animal e não o encontrou, porém demorou demais. Quando disse que não o havia encontrado, Lampião mandou chamar-me e pediu-me que procurasse o burro. Nem bem eu tinha andado uns cem metros, dei com o animal...

SITUAÇÃO DIFÍCIL

TROUXE-O de volta e entreguei a Lampião, que olhou zangado para Pocorante, xingando-o e chamando-o de boboca. O menino demonstrou não gostar das ofensas e Lampião, enfurecido, deu-lhe um bofetão que fez Pocorante rolar pelo chão: 

“Isso é pra tu me arrespeitá, fedelho...” 

O menino saiu chorando, e eu me afastei, voltando para o lugar onde estava meu equipamento. Pocorante foi ter lá chorando e eu o olhei irritado, pois nunca pude suportar covardia. Vendo-o choramingar, disse-lhe: 

“Tu és um frouxe mesmo... Levas um bofetão e não fazes nada. Por que andas com esse fuzil na mão? Já te esqueceste que isso é arma de homem?”

O garoto ficou meio envergonhado e baixou a cabeça, quando um “cabra” se aproximou de nós e disse que Lampião o estava chamando. Lá se foi Pocorante novamente choramingando e quando se aproximou de Lampião, este já estava aborrecido com ele por outra coisa que lhe mandara fazer e ele se esquecera, mas não me lembro o que era. Lampião agarrou-o pela gola do dólmã e o rapaz, chorando, disse: 

“O senhor só bate em mim, Capitão. No Volta-Seca o senhor não bate...”

Lampião fitou-o intrigado e disse: 

“Por que não?” 

E o garoto, um tanto venenoso e acovardado: 

“Porque ele disse que lhe dava um tiro se batesse nele...”

Ao ouvir isso, Virgulino largou o menino e mandou que um “cabra” me fosse chamar. Quando me foi transmitido o recado, eu fiquei logo sabendo que a coisa estava preta. Mas fui com disposição e me apresentei a Lampião: 

“Pronto, seu Capitão.” 

Virgulino olhou-me de alto a baixo e disse:

- Estou sabendo que você me dava um tiro se eu lhe batesse...

- Não é só o senhor, não, Capitão. Qualquer um que me bater morre! – respondi.

Lampião olhou-me zangado e vi então que minha hora estava próxima, mas não demonstrei medo. E ele falou:

- Pois vou dar-lhe um bofetão!

Preparei o fuzil e respondi desafiador:

- Se bater, morre!

Diante disso, Maria Bonita, que estava próximo, segurou Lampião e pediu que parasse aquilo, o mesmo fazendo os demais. Lembro-me bem que Maria Bonita dizia: 

“Não mate ele! Afinal, ele é muito útil. É uma criança e mais nada. Depois tudo dá certo...” 

Ainda que contido por alguns “cabras”, e com Maria Bonita pendurada em seu pescoço, Lampião não tirou um segundo sequer os olhos de cima de mim. Ele estava mais surpreso do que zangado, razão pela qual atendeu aos apelos feitos em meu favor. Ordenou então que o bando levantasse acampamento e eu, daí por diante, senti que não estava mais seguro. Agora, além das balas da volante, eu teria que estar atento ao fuzil de Lampião. Quando eu passava diante dele, notava pelo canto do olho que ele me fitava com certo rancor. Mas assim mesmo o tempo foi passando e nós íamos saindo daquele lugar amaldiçoado que era o Raso da Catarina.

BRINCADEIRA DE MAU GOSTO

ANDAMOS muito depois disso, mas Lampião nunca mais me dirigiu a palavra, o que me indicou que ele me estava marcando. Aquela fora a primeira vez que um “cabra” se atrevera a desafiá-lo e não morrera. Eu mesmo não compreendia a razão de não ter ainda explorado o gênio violento de Virgulino.

Quando o bando estava em Maçaranduba, na divisa de Sergipe com a Bahia, um dia Lampião falou para nós todos: 

“Pode precisar que amanhã mais ou menos às onze horas a bala vai comer.” 

E, de fato, no dia seguinte, mais ou menos a essa hora, estávamos em combate com a volante. Eles eram muitos, mais de cem, e nós, uns trinta e dois, no máximo. Mas não estávamos levando a pior. O tiroteio foi bravo, e ninguém do bando caía ferido, pois as balas dos soldados iam para o alto, cortando a folhagem das árvores... Eu, que nessas horas sempre me empolgava, gritei para os soldados: 

“Atira por baixo que as balas estão indo pro céu... Nosso Senhor não fez mal nenhum a vocês, seus macacos!”

Foi a nossa desgraça essa minha brincadeira, pois os tiros passaram a vir mais baixo e logo quatro “cabras” foram atingidos, quase que ao mesmo tempo. Olhei para Lampião e senti seu olhar de ódio, mas continuei atirando contra a força.

Estavam caídos no chão Bananeira, com um tiro na rótula, Quinquim, com a barriga estraçalhada e o fígado à mostra, mas vivo e consciente, e Sabonete e Catingueira, ambos mortos com tiros na cabeça. Lampião aproximou-se de Quinquim e, vendo-o sofrer tanto, sacou do parabélum e deu-lhe um tiro de misericórdia na testa. O infeliz pareceu até agradecido pelo “gesto humano” de Lampião, e chegou a sorrir enquanto Lampião se preparava para matá-lo...

SEGUNDA DESAVENÇA

O BANDO batia em retirada, mas bem organizado e levando mesmo a melhor sobre a volante. Em dado momento, falei com Lampião que Bananeira estava vivo e ferido, precisando de auxílio, pois não podia andar. Lampião olhou-me friamente e respondeu: 

“Você não está ensinando os “macacos” a atirar? Vá você buscar Bananeira”. 

Foi o que fiz, ajudado por Fortaleza, que colocou sobre o lombo de um burro. Eu vinha atrasado, puxando o animal e cuidando de Bananeira, até que me perdi dos demais. Só à noite é que encontrei o bando, e vinha exausto. Lampião aproximou-se de mim e ordenou: 

“Monte de novo e continue com Bananeira, porque os soldados podem vir no rastro!”

Era falso o que Lampião dizia. O que ele queria era estafar-me por castigo, mas tão cansado eu estava, que respondi: 

“Alguém tem me ajudar...” 

Mas Lampião com energia retornou: 

“Monte sozinho!” 

Aquilo era o limite da minha paciência, pois gritei: 

“Nem meu pai me faz montar outra vez!”

“Monta, moleque!” 

Gritou Lampião, agressivo, e bem próximo de mim. 

Eu já estava alucinado e respondi: 

“Moleque é você!”

Foi a conta! Lampião apanhou a pistola e encostou o cano na minha barriga, mas ao mesmo tempo eu fiz o mesmo nele com o cano do meu fuzil. Ele me olhava e eu o olhava, mas isso não durou mais do que poucos segundos, pois os “cabras” e novamente Maria Bonita entraram na briga e nos separaram, levando cada um de nós para um lado. Lampião estava furioso e dizia o diabo de mim. Não se cansava de repetir: 

"Criei essa cobra pra me morder... Mas antes disso eu mato ele!”

Devo frisar, porém, que não acredito, hoje, estivesse ele naquela ocasião muito zangado. Ele gostava de mim, ele de fato me criou no crime desde os onze anos de idade e eu já tinha quase quinze. Depois, ele me conhecia muito bem, assim como conhecia os demais “cabras”. Sabia de minha utilidade no bando. Sabia que eu era capaz de matá-lo! Eu, porém, o conhecia também. E não ignorava que, apesar de ter escapado duas vezes, não poderia continuar com tanta sorte, pois quando ele chegasse ao seu limite o meu fim viria.

A FUGA

E DE FATO, o meu fim estava próximo, pois ele se acalmou. Era calmo que ele se mostrava mais perigoso... Eu estava afastado, mas as notícias vinham até a mim, que não soltava o meu fuzil um segundo sequer, pois sentia a gravidade da situação.

O momento mais importante dessa rixa veio quando Lampião, calmo, determinou o meu fim. Proibiu Maria Bonita de se intrometer, bem como os demais “cabras”. Fez mais, dizendo: 

“Vigiem ele bem durante a noite, pois amanhã vou almoçar ele! Ele não pode mais continuar vivo!”

Era o fim! Vieram me contar, e, ao mesmo tempo, todos me aconselhavam a fugir. Lampião não voltaria mais atrás e me liquidaria.

CONTINUA...

Fonte: facebook
Página: Antônio Corrêa Sobrinho

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário